quinta-feira, 1 de março de 2018

A GAVETA DA ESCRITORA


Levantou-se e abriu a porta num ímpeto, não tanto para saber quem era, mas para por termo à estridência impertinente com que a campainha lhe perfurava os tímpanos. Diante de si, perfilavam-se dois polícias, o coordenador Victor Fernandes e o inspector Mário Pires, pelo menos assim se apresentaram, anunciando, de seguida e sem mais cerimónias, que vinham fazer uma busca. Perante o seu enorme espanto, mostraram-lhe o mandado judicial e foram entrando, mesmo sem convite.

Mal recuperou a voz, ela perguntou, num rompante de indignação, a que se devia tão inusitada intrusão no seu local de trabalho. Em parcas e frias palavras, o Fernandes remeteu para o papel, o mandado ou lá o que era, sem se deter em pormenores, como se a urgência da tarefa devesse sobrepor-se a tudo, mesmo à natural curiosidade da dona do local.

O Pires - ou Marinho, como era tratado pelos colegas -, arrastava-se atrás do coordenador, olhando para as paredes, que eram quatro, amplas, formando um open space, todo branco e despejado, o que faltava em móveis sobrava em livros. Três das paredes eram revestidas de alto a baixo com estantes brancas, de linhas depuradas, com a única função de dar abrigo a uma imensidão de livros, de todos os formatos, tamanhos e conteúdos - esta última parte ele nem percebeu, não era dado a livros, o que não se poderia dizer do outro, o Fernandes.

Junto da única parede livre, rasgada por duas grandes janelas, filtro duma luminosidade intensa, encontrava-se uma secretária branca, de tamanho XXL e linhas minimalistas. Sobre ela, um computador, em pausa, uma impressora, ladeada duma resma de papel A4 branco e de várias folhas impressas, uma chávena de café, meio cheia ou meio vazia, consoante a perspetiva, e um prato de bolachas, uma delas marcada por uma dentada, um iPhone e um maço de lenços de papel. Do lado direito, sob o tampo, albergava-se uma enorme gaveta, semiaberta.

Para além da cadeira da secretária, em pele preta, de desenho ergonómico, apenas havia, no canto oposto, dois sofás, no mesmo material, mas de cor branca, separados por uma pequena mesa, onde repousavam alguns livros, mais livros. Uma porta dava acesso a uma pequena casa de banho e a um espaço mínimo, destinado a preparar uma refeição ligeira, mas que seria exagerado chamar de cozinha.

Talvez assustados pela profusão de livros - e, seguramente, não eram livros o que procuravam -, os polícias começaram por explorar a mini casa de banho e a mini espécie de cozinha que não chegava a sê-lo. Como, à semelhança do resto, se tratava de espaços tão desimpedidos quanto a brancura e o despojamento geral já faziam supor, a busca foi rápida, aliás, tão rápida quanto infrutífera. Fosse o que fosse que procuravam, estava longe de se encontrar por ali.

Atiraram-se, então, às estantes, deslocando aleatoriamente os livros, como se de trás deles fossem saltar sabe-se lá que segredos!

Ela, que até ali tinha conseguido dominar a indignação - afinal, ignorava o real motivo de tão estranha visita -, agitou-se freneticamente, perante a ameaça em perspetiva de ver os livros, tão trabalhosamente ordenados, espalhados sem critério. Elevou a voz, o Marinho encolheu os ombros, a significar, não é nada comigo, o Fernandes empertigou-se e proferiu, "Senhora D. Joana Moreira, estamos só a cumprir a nossa obrigação". "Mas não precisam de desarrumar tudo, pois não?", respondeu ela, e acrescentou "Se ao menos explicassem o que vieram fazer, talvez eu pudesse ajudar, não?" E ele, mula, a mastigar as palavras, como quem come a resposta, e o outro a encolher os ombros como quem se isenta de responsabilidades, e a esboçar um sorriso meio cúmplice, meio canalha.

Por fim, desistiram dos livros e encaminharam-se para a secretária. Escancararam despudoradamente a gaveta meio aberta, e começaram a retirar o conteúdo, objecto a objecto. Talvez num acesso de organização, o coordenador ordenou ao Marinho, "toma nota, escreve aí: umas tesouras virtuais e um tubo de cola virtual". Interrompeu-se, dirigindo-se a ela, numa ignorância genuína: "Mas isto serve para quê, minha senhora?"

"Para cortar palavras e para colar palavras, respectivamente", respondeu, seca.

Ele prosseguiu:

"Um arquivo de coisas ruins, a saber: desgostos gerais, amores não correspondidos, amores traídos, amores excessivos, abusivos e obsessivos, lutos vários, amizades estragadas, auto-estimas pelas ruas da amargura, frustrações diversas, desesperos, faltas de chuva e de sol, consoante, neuras daquelas de nem se saber como nem porquê, melancolia, zangas, cansaços e etc.;

Um ramalhete de sonhos sonhados (nada a ver com sonhos acordados), arrumado em três modalidades, sonhos belos, pesadelos e sonhos lúcidos; 

Um pacote de mistérios, uns reais outros inventados;

Um molho de parvoíces, por exemplo, notícias de TV e de revistas do cabeleireiro;

Uma colecção de frases estranhas, algumas engraçadas, trazidas pelo ar, sendo uma delas: és mesmo um coca bichinhos, entras numa loja e pões tudo doido;

Uma embalagem de Toblerone, contendo, em vez do chocolate, um triângulo feito de passado (re)inventado, futuro aprisionado e presente mais que passado;

Uma faca de fragmentar ideias, uma lima de polir palavras e um aparador de adjectivos e outros;

Um triturador de realidades capaz de produzir diferenças;

Uma caixa sem lados nem tampa, só a base". O Fernandes interrompeu-se, de novo, para a interpelar, "A senhora desculpe, há-de ter de esclarecer de que se trata tudo isto, mas, para já, diga-me, que caixa é esta?"

"Olhe, o senhor é mesmo ignorante, então não percebe que é uma caixa para se pensar fora dela?! Haja paciência!" Foi a resposta.

Só então despertou para a incómoda realidade, seria possível ter-se enganado na identificação ou na morada? Afinal, nada fazia sentido, nada do que encontrava correspondia ao que procurava. Pouco à vontade, acantonou-se num cochicho com o Marinho, que, entretanto, parara de escrevinhar e recolhera as mãos aos bolsos, como quem se demite de responsabilidades: "Ouve lá, tu conferiste bem os dados, o nome e a morada?", "Eu acho que sim, o chefe não confirmou?" - ouviu-os ela.

Dirigiu-se-lhe, a medo, pedindo o cartão de cidadão. Apelido, Souto Moreira, e não Soeiro Moreira. "A senhora não é psicóloga?",  "Não, sou escritora!".

O Marinho já tinha um pé fora da porta. O Fernandes não demorou a fazer-lhe companhia, empurrado pela Joana, sem oportunidade para apresentar sequer um pedido de desculpas. A porta fechou-se com estrondo.









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