sábado, 25 de novembro de 2017

O SENTIDO DA VIDA DO SR. JOBERT


o sr. Jobert descongelou. em sentido figurado, entenda-se (não que tivesse sido libertado duma câmara frigorífica onde tivesse entrado por engano ou para onde o tivessem empurrado por acidente ou, bem pior, por descarada maldade)! apenas quero dizer que, até então, a sua vida fora muitíssimo hirta, espartilhada por varetas, das quais, apesar de inúmeras tentativas, não conseguira libertar-se. donde provinha tudo isso, não é o momento nem interessa indagar. o importante é que o sr. Jobert, finalmente, descongelou, ou seja, desenvencilhou-se das varetas que, durante anos e anos, por sinal os mais duradouros da sua vida, lhe impuseram aquela tão incómoda quanto prejudicial rigidez.

o menino Jobert tinha sido uma criança como outra qualquer. talvez. para dizer a verdade, não sei nada sobre a sua infância, se foi alegre ou taciturna, calma ou ansiosa, equilibrada ou disparatada. também não interessa nada, já vai tão longe a infância do sr. Jobert! lembro-me agora, de raspão, muito de raspão, de ter ouvido dizer que fora uma criança feliz, mas, como não foi ele a dizê-lo, ignoro se se trata da verdade ou não. afinal, como pode alguém testemunhar os estados de alma de outrem, quando, as mais das vezes, nem o próprio os conhece? de resto, devo admitir nunca me ter cruzado com nenhum conhecido do sr. Jobert, pelo que esse hipotético testemunho só pode pertencer ao domínio da invenção (embora não premeditada, não é minha intenção deturpar os factos).

na adolescência, Jobert começou a dar mostras de inquietação, seguida de tédio. posso afirmá-lo, porque li os papéis para onde começou a confessar-se ou a desabafar, por volta dos quinze anos, e que foi mantendo até descongelar. portanto, tudo o que passo a referir baseia-se nesses papéis. não que sejam muitas coisas, até porque a vida do sr. Jobert foi pobre de acontecimentos. o mesmo não se diga dos seus pensamentos. eram bem profundos, repletos de sentido, mas, em geral, tristes ou desesperados. porquê trazê-los aqui?

direi, apenas, que o sr. Jobert trabalhou com afinco, mas, talvez por ser tão hirto, não teve sorte nas coisas do trabalho. amou profundamente, mas talvez por ser tão hirto, a sorte não lhe sorriu nas coisas do amor. e o mesmo sucedeu nos restantes capítulos que, segundo as normas estabelecidas, completam o leque das relações humanas: a família, os amigos e o resto. mesmo no jogo. não será exagero afirmar que o sr. Jobert sofria duma qualquer inquinação que lhe impedia o triunfo! imagine-se, até conseguia desmentir, por negativa dupla, o provérbio, sorte ao jogo, azar ao amor. como já se disse, acumulava azar em ambos (para além dos demais campos da vida). evidentemente, cheguei a colocar a questão: as coisas passavam-se assim devido à sua rigidez ou, inversamente, esta derivava do facto de as coisas sucederem assim? nunca cheguei a nenhuma conclusão (nem creio haver resposta para tal tipo de questões).

a partir de certa altura, o sr. Jobert retirou-se, porque chegou o tempo de se retirar. do trabalho insatisfatório e pesado, dos amores desejados, sonhados e não vividos, dos amigos ausentes, da família demasiado ocupada para dar pela sua existência, e do resto. estava  muito cansado. mesmo muito cansado.

então, olhou para trás e sentiu um enorme alívio. escreveu nos seus papéis: já passou. acrescentou um ponto de exclamação e um smile. confesso que fiquei espantada com o smile. depois caí em mim e achei que fazia todo o sentido. o smile, o ponto de exclamação, a frase, o (triunfal) descongelamento do sr. Jobert. tudo fazia todo o sentido!

voltei ao alfarrabista onde adquirira o livro desconjuntado em cujas entranhas deparara com os papéis manuscritos do sr. Jobert. ansiosa de curiosidade, indaguei sobre a sua origem e a do seu proprietário. respondeu-me ele: 

- olhe, foi uma coisa deveras estranha, um velhote que eu nunca vira apareceu por cá, mirou e voltou a mirar um e outro livro, sem se decidir por nenhum, e, enquanto me distraí na atenção a um cliente, esgueirou-se, deixando esse livro, agora seu, sobre um canto do balcão. mal me apercebi, corri para a rua, mas já nem a sombra lhe vislumbrei. esperei dias, depois meses e a seguir anos, pelo menos uns dez, que ele voltasse para recuperar o livro. nunca voltou. foi assim que acabei por o colocar à venda. curiosamente, nunca reparei nos manuscritos de que fala. de resto, nunca consegui saber nada sobre o tal velhote, apesar de ter perguntado a diversos clientes.

o alfarrabista ainda continuou a dizer coisas - certas pessoas, quando não sabem, vão sempre dizendo coisas, talvez convencidas de que assim preenchem o vazio da ignorância -, mas deixei de o ouvir. 

já na rua, exultava com a convicção de ter percebido a razão por que o sr. Jobert, finalmente, descongelara. e senti-me muito feliz por ele.







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