terça-feira, 23 de maio de 2017

PERDA


Rostos desfilam-me, claros, nos horizontes da memória
Rostos idos, entenda-se
Retidos num sorriso, numa exclamação, ou noutra expressão determinada
Suspensos nas pregas do tempo, imutáveis, vívidos

Outros rostos, os mais queridos, desvanecem-se, em sombra, nos horizontes da memória
Ameaçam perder-se para sempre
Ocultos nas esquinas do tempo, deslavados, fugidios
Revelam-se apenas por ínfimas parcelas
Uma boca, uns olhos, o mero esboço dum gesto perdido
Em vão, tento recuperar-lhes a voz, o olhar, o sentido
Sim, em vão

Recorro aos registos fotográficos
Desesperada forma de suprir a fuga destes rostos
Baralho-me nos horizontes da memória
Já não distingo o que lhes pertence e o que ficou simplesmente registado

Ocorre-me a palavra perda, formulo-lhe o pensamento
É isto a perda
Um tremendo animal que se alimenta de grandes esquecimentos e de pequenos truques


(Vídeo obtido em pesquisa no YouTube)








domingo, 7 de maio de 2017

A MULHER QUE ACABOU A CONTAR AS PALAVRAS


Os tempos iam-se sucedendo, primeiro lentamente e depois nem tanto, quando notei que falava cada vez menos. Descontadas as palavras de saudação e poucas mais, quase inexistiam conversas. Não que me fizessem grande falta, sempre fui mais de ouvir que de falar, ao menos até certa altura, justamente aquela em que as conversas começaram a escassear ou me dei conta disso. De qualquer das formas, sempre considerei que o mundo podia passar muito bem sem as minhas asserções. Cheguei assim ao ponto de, por dias seguidos, me limitar a exclamar bom dia, ao acordar, um bom dia dirigido a mim mesma, entenda-se. Obviamente, atrás do cumprimento, escondia um sorriso sardónico, uma vaga esperança, uma teimosia ou qualquer outra amostra de razão ou emoção. 

Digo isto por crer que tal estado foi a causa (última) da minha decisão: partir. Partir sem mais e sem propósito especial, a não ser o objectivo único de me afastar para um longe cada vez mais distante, de me confundir com realidades cada vez mais outras, em suma, de estranhar cada vez menos a ausência das palavras.

Não, não me podia queixar de falta de ligações, tinha-as, algumas até bem profundas, embora, isso sim, em número reduzido. Acontece que notava cada vez mais a fragilidade dos respectivos laços de sustentação, ou porque se criam fortes ao ponto da desnecessidade de demonstração, ou porque se julgavam eternos ao ponto da desnecessidade da urgência, ou porque... sei lá!, (já) não interessa. Fossem quais fossem as razões ou a sua falta, concluí que  os dois lados das minhas ligações, o meu e o dos outros, não partilhavam o mesmo tempo ou o mesmo lugar ou ambos. 

Gizado o diagnóstico, apressei-me a concretizar a decisão: parti. As despedidas foram breves, detesto dramas e dar nas vistas. Tudo se passou como um até logo (aliás, na vida quase tudo não passa dum até logo, embora, frequentemente e a posteriori, transformado em até nunca, por força da natureza das coisas,  das circunstâncias, do acaso ou sabe-se lá do quê, consoante).

Fiz-me à estrada, por assim dizer, usando tudo quanto se movia, desde automóveis e camionetas até aviões e navios, passando por comboios e quantos outros meios de transporte se possam imaginar. Presidia um só critério: levarem-me cada vez mais longe.

Através do mundo, cruzei-me com muitas pessoas e com ninguém, por vezes falei, nunca muito, cheguei a comunicar gestualmente, por desconhecimento da língua, outras vezes nem assim, que o significado dos gestos não obedece a um código universal. Alternadamente, senti-me entusiasmada, atordoada, cansada, despropositada, aparvalhada, perdida e encontrada (por efémeros segundos). Nunca admiti descontinuar o desígnio inicial, regressar apresentava-se-me como uma impossibilidade.

Já muito caminho adiantado, deparou-se-me a possibilidade de embarcar numa nave espacial, a caminho duma das primeiras viagens intergalácticas destinadas ao comum dos mortais, categoria a que pertencia. 

Por essa altura, ocorrera-me começar a contar as palavras proferidas diariamente. Não se tratou propriamente duma decisão racional, não pretendia, por exemplo, lançar as bases ou recolher dados para um estudo sobre a influência da falta de uso das cordas vocais no respectivo estiolamento ou, porventura e hipótese mais radical, na perda da fala. Talvez se tratasse, apenas, duma espécie de mania, do domínio da obsessão-compulsão: palavra dita, (logo) palavra contada. Talvez fosse isso. Ou não.

Comecei a viagem espacial em companhia de trinta e cinco pessoas, incluída a tripulação. O espaço era exíguo, mas havia um lounge, com bar ao canto, destinado ao convívio daquela gente suspensa em tanto de ociosidade quanto de curiosidade. Aí eram organizados passatempos, em especial, quando atravessávamos anos-luz de escuridão, creio que destinados a serenar alguma mente mais ansiosa e susceptível a ataques de claustrofobia. 

Calhou-me ganhar um dos passatempos, uma espécie de concurso em que venceria quem, num dado período de tempo, conseguisse proferir menos palavras. Num primeiro momento, fiquei admirada, pois nunca tive sorte ao jogo (nem ao amor ou a qualquer outra coisa, diga-se de passagem). Logo a seguir, caí em mim, e concluí, cheia de convicção, ora, está tudo explicado, isto não foi sorte, foi competência, fruto de muito tempo a contar palavrasPassei a interrogar-me sobre o prémio, alguma merda, pensei, com a sorte que me costuma assistir (diverte-me sempre usar esta expressão)! Mas não, tratava-se dum passeio numa nave monolugar, toda artilhada de automatismos, que me levaria ao Asteróide B612, em visita ao Principezinho. Não era mau de todo e sempre cumpria o objectivo de me conduzir para o mais longe. 

Animada de contentamento, agradeci o prémio, muito obrigada (duas palavras, contei) e preparei-me para partir. Um dos viajantes propôs-se comprar-me o prémio, mas, evidentemente, rejeitei, embora com certa cortesia, obrigada, mas não, quem sabe não ganha para a próxima (dez palavras, contei, quase um recorde). E lá fui a navegar, com a promessa do regresso da nave-mãe daí a umas horas, que não me preocupasse, e eu, ok, tudo bem, cheia de vontade de atingir o mais longe.

Passado um tempo, não sei calcular quanto, avistei um pontinho minúsculo que rapidamente se fez ali. Era o Principezinho, escarrapachado sobre o B612, uma perna para cada lado, quase a escorregar para o infinito. Os olhos derramavam-se-lhe pela cara abaixo, reflectindo em mim um olhar muito triste. Levantei a capota da nave, disse-lhe, olá, Principezinho (duas palavras, contei) e fiquei-me por aí, a tempo de não perguntar o que me ía saindo pela boca fora, porque estás tão velho? (seriam quatro palavras, suspirei, com pena). Ele não foi capaz de dizer nada, a não ser através do olhar. Fez-se-me uma vontade pungente de o convidar a vir comigo, talvez conseguisse arranjar-lhe ocupação, quem sabe, uma digressão pelos ministérios, escritórios e fábricas do Planeta Terra. Simultaneamente, um brilho intenso levou-me o olhar para outro lado. Seguiu-se um fragor de estilhaços e era a nave-mãe a desintegrar-se em fogo de artifício. Quando libertei o olhar daquela visão irreal e incandescente, já não vi o Principezinho.

Duma coisa, duma única coisa, estava certa, atingira o ponto mais longe da minha viagem. Como se o Principezinho e os ocupantes da nave ainda pairassem por ali, disse, adeus (uma palavra, contei). A última palavra.