quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

A AUTÓPSIA


Lembro-me que era Primavera, embora talvez fosse qualquer outra estação do ano. Desci do autocarro e encaminhei-me para o edifício de pedra austera, elevando-se silencioso, como se mergulhado em luto eterno, no desnível da calçada, aí a uns três, quatro andares, ou mais ou menos, nunca fui de reparar nesse tipo de pormenores. Franqueei o átrio amplo, perguntei ao porteiro e segui as indicações. Subi umas escadas largas, de mármore (?), debruadas por um corrimão arredondado (?), encontrei-me com um corredor desafogado e depois era virar à esquerda, novo corredor, e encontraria a sala, também do lado esquerdo deste último corredor. Tudo muito liso, cinzento e sombrio, a condizer com o fato de racionalidade (e tédio e...) que levava vestido - por essa altura era o único fato com que cobria a minha frágil nudez. 

Também por essa altura, já gostava de romances e filmes policiais, não me impressionavam as cenas macabras, nem o sangue a esguichar de vítimas estropiadas. A visão daqueles mundos de angústia, conflito e terror, filtrada pela lente das artes do imaginário, atraía-me sem resquício de perturbação. Talvez por isso, ia convencida de que enfrentaria a prova sem a vergonha das reacções (vómitos, desmaios...) anunciadas, nos corredores da Faculdade, pela voz divertida dos colegas mais velhos, os que já tinham passado por . Mas, devo confessar, não ia totalmente convencida. Um fio de inquietação suspendia-se algures, no recesso de dúvida e cautela que, ao confeccionar o meu fato de racionalidade, dissimulara como bolso de recurso, bem no interior.

Foi assim que segui em frente e virei à esquerda. No lado direito do corredor, sucediam-se amplas salas, cujas portas escancaradas expunham uma profusão de cadáveres estendidos (ou exibidos?) sobre marquesas, numa nudez indecorosa de abandono. Foi aí que o meu fato tecido de fios de racionalidade se esticou em rasgões súbitos e mudos, despenhando-se no chão gelado, enquanto a minha nudez desprotegida se confundia com a dos corpos desvalidos dos defuntos.

Retrocedi, impelida pela desorientação do choque, estaquei. Não, não podia desistir. Apanhei os trapos do meu fato e cobri-me com eles o melhor que pude, desapegando-me dos corpos mortos estendidos ali ao lado. Após uma pequena pausa, transpus a distância até à sala de destino.

O horror que me aguardava não era menor. Nem o choque. Nem o impulso de correr dali. O fato ameaçou, novamente, ceder, mas mantive-me firme. Já ali estavam vários colegas. Diziam-se graças, para fingir uma normalidade suportável. Dispusemos-nos à volta da mesa, enquanto o médico e o assistente se preparavam para começar. Coloquei-me na primeira fila. Talvez porque aí seria forçada a segurar o meu fatinho de racionalidade, talvez para me desafiar, sei lá. E vi tudo, sem desviar os olhos, como se precisasse de me demonstrar alguma coisa, talvez uma força que não tinha (e outra que tinha, mas não era equivalente...).

O cadáver sobre a mesa era o de um velho, creio que cego, e, traçada entre o peito e a barriga, tinha uma larga estrada castanho-avermelhada, quase poderia confundir-se com terra batida, rasto do comboio que o trucidara. Depois foi a dança das serras e bisturis, extracção e pesagem de vísceras e tudo o resto que envolve uma autópsia, a primeira autópsia a que assisti, numa aula prática (se foi!!!) da cadeira de Medicina Legal, como jovem aluna do curso de Direito.

Tudo aquilo deu-me muito que pensar sobre a condição humana, mas já não sei que pensamentos (embora não seja difícil de imaginar). Deu-me também uma enorme repulsa por ovos mexidos e omeletas, dada a sua semelhança visual com a gordura que se alberga sob a nossa pele. E provocou-me, ao longo de plúrimos anos, terríveis pesadelos, em que me apareciam talhos de cujos ganchos pendiam corpos humanos e não de (outros) animais. 

(Imagem obtida em pesquisa Google)





quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

LIVRO VINDO DO FUNDO DO MAR


avancei por sobre a areia deserta. arregacei os jeans até bem acima dos joelhos, descalcei os reebok, cosi-os um ao outro por um laço dos atacadores e pendurei-os num ombro, abandonando os pés e as mãos ao devaneio da aragem mansa, soprada de offshore. não olhei para o relógio, porque não era tempo de reparar nas horas, aliás, nem levava relógio.

os meus pés dirigiam-se ao mar, saboreando aquela macieza e o tacto de um ou outro seixo polido, sobressaído do vasto areal. pedaços de madeira e plástico vagueavam por lá, roçando-me a distração, antes de me desviar, quase assustada ou repugnada. restos sabe-se lá de que naufrágios. também havia conchas, muitas partidas em figuras estranhas, e algas, penso que eram algas, enfim, sobras de vegetação marinha, agonias do vaivém marinho. e uma ratazana morta. dei um salto em frente, enojada, e os meus pés receberam a primeira lambidela de onda. soube-me bem. em contraste com o ar atormentado da atmosfera, esboçada a cinza, encobrindo mil ameaças, a água oferecia-se quase tépida, despida de agressividade ou de mistério. continuei.

não pensava em nada, a ideia era justamente essa, não pensar, aliás, o pensamento andava-me embotado. porquê forçá-lo? mais valia deixar de pensar no pensamento...

fui andando, creio que fui andando, o mar já me cobria as coxas, por cima das jeans que não consegui enrolar mais para cima. paciência, haviam de secar. de repente, algo me bateu na canela da perna direita, soltei uma exclamação dolorida, - ai, ai, debrucei os olhos, aquilo já se desviara e ameaçava recolher com o retrocesso da onda, - não se cansará o mar de não se cansar?, pensei. estendi a mão, com a rapidez e precisão duma caçadora treinada, que não sou, e consegui. ali estava a presa! um objecto duro, que a princípio não identifiquei, porque estava envolvido num enredo apertado e informe de vegetação marinha, certamente vinda do fundo do mar ou do fundo dos tempos, o que vai dar ao mesmo. o coração batia-me de entusiasmo, no pressentimento duma revelação estranha.

encaminhei-me para o areal, com uma pressa de curiosidade, moderada por lentidão forçada, vontade de fazer durar o ansiado momento. os momentos de espera, deste tipo de espera, são os melhores. recostei-me numa duna, não muito longe do mar, àquele nível da maré. esfreguei distraidamente a canela, queixosa do embate, e comecei a afastar, com lentidão apressada, o emaranhado de plantas que colonizava o objecto. surgiu, por fim, qual segredo desvendado, uma garrafa de vidro, perfeitamente arrolhada. agitei-a, não que o seu interior fosse líquido, mas porque lá habitava um pequeno objecto, talvez um pequeno ser, pensei, deixando-me conduzir pela fantasia, de que nunca conseguira crescer. o pequeno objecto andou para cá e para lá, deixando-se antever, com dificuldade, através das paredes enegrecidas da sua garrafa-cárcere. passei uma mão cheia de areia pelo vidro, aclarou um pouco e vi, com espanto, o que me pareceu ser um livro miniatura, de capas vermelhas e folhas de rebordo prateado. do espanto à necessidade de confirmação foi o tempo de bater ruidosamente a garrafa na saliência da rocha mais próxima. dos estilhaços queixosos, saltou o livrinho miraculosamente intacto. aconcheguei-o nas mãos trémulas, parei um pouco a observá-lo, como quem espera algo estranho, por exemplo, que ele começasse a falar comigo.  só depois, com um cuidado rigoroso, me atrevi a abri-lo na primeira página. Esperava, obviamente, uma mensagem vinda de muito longe e de muito antes. Não é isso que se deve esperar do interior duma tal garrafa, devolvida pelo mar?

mergulhei na maior das incógnitas. nem uma página escrita! voltei à capa. ía jurar que também estava em branco, mas, impressas no prateado do rebordo das páginas, apareceram as seguintes palavras, LIVRO EM BRANCO. raio de brincadeira, pensei, com tanto de decepção quanto de apreço pela ideia. aconcheguei-me no encosto da duna, a aragem começava a tornar-se vento e o céu pesava, cada vez mais cinzento. apertei o livrinho entre os dedos, como quem tolhe uma criança com excesso de cuidados.

num sobressalto de pios agudos, escancarei os olhos  para uns tons de cinzento agora mais fundos, a chuva não devia tardar. era a hora das gaivotas. lá no alto, rodopiando sobre a minha cabeça um pouco zonza, coreografavam um ballet pautado por guinchos. pendia-lhes das patas o que me pareceram farrapos esbranquiçados. depois, dum modo sincronizado, largaram os farrapos ou fosse lá o que fosse. iniciaram uma descida lenta, harmoniosa, convergindo-me para o colo, onde, forçando os meus dedos carcereiros, se abriam as capas do pequeno livro. agora ao perto, os farrapos ou fosse lá o que fosse, revelaram-se folhas escritas, de rebordo prateado, apequenando-se à medida que desciam, até serem recolhidas pelo livrinho aberto, qual pássaro de boca escancarada à espera de alimento devido. como que por osmose, fundiram-se nas folhas em branco, restituindo-lhes a vida dos caracteres impressos. quando já nenhuma folha pairava no ar, o livrinho fechou-se lentamente, aliviado, deixando de combater a pressão dos meus dedos ansiosos. quase com medo, segurei os olhos na capa. em branco, estava em branco.

guardei-o, cuidadosamente, num bolso dianteiro dos jeans, desarregacei os jeans, desatei e calcei e voltei a atar os reebok, aconcheguei-me na camisola de malha, estava frio, o céu tinha acabado de escurecer de vez, rumei a casa.

animava-me a antecipação do prazer de ler aquelas páginas que tinham roubado o título ao pequeno livro.

(imagem obtida em pesquisa google)