quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

CAPUCHINHO VERMELHO: VERSÃO URBANA


Certo dia, a avozinha, montada em seus passos miúdos e periclitantes, caminhava através dum descampado, rogando pragas à vida e aos montes de lixo que se iam sucedendo. Da mão flácida e pintalgada de manchas castanhas pendia-lhe um envelope.

De repente, como que surgido do nada e de parte nenhuma, apareceu-lhe ao caminho um lobo, magro e decrépito, que logo a cumprimentou simpaticamente, - Bom dia, minha senhora! Bem, o dia está um pouco fosco, mas o que conta é o nosso estado de espírito, não é verdade? 

Ela encarou-o, de mau humor, e rosnou secamente, - Bom dia.

Cheio de paciência e astúcia, o lobo foi alimentando uma conversa de coisa nenhuma, até conseguir amaciar a avozinha, ao ponto de se atrever a gabar-lhe o chapéu que ela usava, sobrevoando a rala, cinzenta e desordenada cabeleira. - Que bonito chapéu a senhora tem e que bem lhe fica! - Acha?, respondeu ela, fingindo um espanto todo feito de vaidade. Sem dar tréguas ou espaço para reflexão, o lobo indagou, - E esse envelope, aí na sua bela mão, senhora, é o quê, alguma carta do namorado, perdoe-me o atrevimento? Ela fingiu que não sorria e respondeu, - Ora essa, qual namorado qual quê, nesta fase do campeonato! É o cheque da minha reforma, vou levá-lo a casa do meu neto, não que o senhor tenha alguma coisa a ver com isso. - Então adeus, cara senhora, foi um prazer esta conversa, vou andando que se faz tarde. E lá se foi o lobo, deixando-a de boca aberta e ar de lorpa.

Vencido o descampado, seguiu-se um amontoado de prédios de vários andares, todos de tom cinzento ou amarelado, que não dava para perceber se era da cor da tinta ou da sujidade. As ruas estavam povoadas de caixotes de lixo esventrados, de crianças ramelosas e de adolescentes abandonados às paredes, expelindo rolos de fumo e emborcando cervejas. A avozinha reafirmou as pragas ao mesmo tempo que pensava, já estou demasiado velha para isto, da próxima vez digo ao Sandro que vá ele a minha casa se quer o cheque. Mas era pensamento de pouca dura, que, mal via o neto, derretia-se toda, como se vivesse para aquele momento.

Chegada ao destino, subiu as escadas a custo, quatro andares, a arfar, quase a sucumbir, o maldito elevador mais uma vez escaqueirado. Meteu a chave à porta, entrou e estatelou-se no sofá torto e manchado do átrio de entrada, que era também sala de estar, de jantar e do que mais calhava. Recuperado o fôlego, pôs-se a chamar, - Sandro, ó Sandro, olha a avó!

Como o Sandro não desse sinal, levantou-se dolorosamente, balançou nas articulações gastas, e dirigiu-se à outra assoalhada, o quarto. Pelo caminho - um ou dois passos - ainda a animou o pensamento vertiginoso e mágico de que ele pudesse ter ido trabalhar. Mas não, lá estava refastelado na cama! 

- Olá, Sandrinho, é a avó! Olha, trago-te aqui o cheque da reforma, não é muito, mas sempre ajuda.

O Sandro, cheio de mau dormir - deitara-se de madrugada, depois duma valente confraternização com os amigos, acabada em monumental bebedeira -, mexeu-se no emaranhado da roupa de cama surrada, olhou para ela de má vontade, e disse, por entre dentes, - Deixa aí e pira-te que preciso de dormir.

A avozinha, habituada que estava àquele tratamento, não estranhou, mas, desta vez, não entranhou. Com mão enfurecida afastou a roupa de cima dele e preparava-se para o descompor, por uma vez, uma primeira vez, há sempre uma primeira vez, quando, subitamente, estacou, de boca aberta.

Os olhos do neto tinham um tom amarelado, da boca saíam-lhe tufos de pelos compridos, que não eram de gente,  e da cama pendia uma pele esfacelada de lobo,  a escorregar pelo chão, feita tapete.

Sem sequer perguntar fosse o que fosse, por exemplo, - Porque reluzem os teus olhos em brilho amarelo, Sandrinho?, a Avozinha pegou no cheque, bamboleou pelas escadas abaixo, atravessou as ruas decrépitas do bairro, voou sobre o descampado e fechou-se em casa.

(Imagem obtida em pesquisa google)






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