sábado, 22 de outubro de 2016

UMA TARDE, UMA PRAIA


Eis-me aqui sentada, costas levemente inclinadas para trás, pernas estendidas adiante, descontraídas, como quem acabou de se espreguiçar. Gosto sempre de chegar aqui. Há anos que chego aqui, fico e depois parto. Assim será até ao dia que for o último, aquele em que já não irei ou já não regressarei, mas isso é da vida,  como se sabe.

Foco-me na distância, na linha de separação ou de junção, consoante o ponto de vista - curiosamente, também é da vida, isto da distância coincidir sempre com um ou outro dos extremos -, diviso movimentos leves, lentos, esbatidos, talvez assim pareçam, apenas porque longínquos. Retraio o olhar, mais perto, de longe para perto, e surpreendo-me, surpreendo-me sempre. A cadência nunca se repete, a cor nunca se repete, o som nunca se repete e todavia... Também a vida nunca se repete, embora, por vezes, manifeste uma irritante tendência de repetição.

Através dos vidros entreabertos, não tolhidos pelo empecilho de cortinas impensáveis, apercebo-me, quase sem os ver, da passagem de um ou outro carro. Dispensável, penso. Volto a focar-me na distância, não quero deixar distrair-me pela ocorrência de banalidades. Todavia, as banalidades acontecem, mais um facto da vida. Movimentos de pessoas, vozes de pessoas, risos de pessoas. Não quero saber para onde vão, o que dizem e, muito menos, do que riem. Pelo vidro despido de cortinas desnecessárias, vejo-as, sou forçada a vê-las, estão quase à minha frente, bem, um pouco ao lado.

Volto a mergulhar na distância. Elevo o olhar, como se quisesse planar acima das banalidades. Camadas de cinzento, de vários graus de cinzento, deslizam lentamente, sem pressa nem destino, debruçadas sobre vários graus de verde, azul, cinzento, todas as cores em matizes foscos e cambiantes. Cores que se desdobram, encimadas por cristas brancas, como se manejadas pela hábil e caprichosa mão dum pintor de repetições, todavia, inovadoras - se é que existe tal coisa, repetições...inovadoras!

Esqueci o movimento dos carros, mas não o ruído dos palradores. Procuro concentrar-me no murmúrio de fundo, em cujos braços, outrora, me deixava adormecer. Agora não. Ignoro porquê. Bem, faço uma ideia, mas não é para aqui.

Levo os olhos para a meia distância e avisto um homem em luta, serena mas determinada, com a falta de vento. Curioso, isto de lutar com uma ausência, mas também é da vida, há ausências assim, mais poderosas e determinantes do que mil presenças! Os seus movimentos, a sua insistência na repetição esforçada, têm algo de desafiador. Talvez não queira render-se ao destino ou sei lá a que outra imposição. Por isso insiste no seu ballet falhado.

Uma ave atravessa, por instantes, o meu campo de visão.

O tecto cinzento ameaça romper-se, descarrilar em miríades de gotas, primeiro lentas, talvez, depois, vertiginosas.

Antes de partir - sei lá se pela última vez, não que isso interesse alguma coisa - ocorrem-me dois pensamentos, aparentemente, não conexionados: - este lugar devia ser só meu (talvez assim pudesse voltar a adormecer)!; - tomara que chova!


















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