quinta-feira, 1 de setembro de 2016

SAUDADE DE TER SAUDADES


A partir de certa altura, estás sempre à espera, o sobressalto integra o teu dia-a-dia. Não que dele faças depender o curso da vida - ao menos na medida em que depende de ti... -, mas ele está lá, dissimulado de mil maneiras, roendo-te por dentro, estoirando a cada toque de telefone inesperado. Afinal, é a ordem natural das coisas, eles não são eternos! Eles, os que te precederam, te chamaram para este lado - sem consulta prévia, é certo, mas não pode deixar de ser assim! - e, no caso, te marcaram com o ferrão do sobressalto. Os Pais.

Simultaneamente, mesmo a partir de certa altura, não estás à espera, simplesmente porque recusas que possa acontecer, simplesmente porque não queres que aconteça, simplesmente porque não vislumbras como vais poder sobreviver (-lhes). A caixinha do pensamento mágico a abrir-se em toda a sua magnificência e (sabida) estultice. Quem sabe, um qualquer reduto, soterrado na tua maturidade precoce, se tenha recusado a crescer!

Cada vez que os abraças e beijas - não que, por essa altura, sejas muito dada a abraços e beijos - e constatas que estão bem, dás graças a entidades celestiais, cuja existência a razão te recusa aceitar.

Um dia, um maldito 26 de Julho, o telefone toca. Não, não vais entrar em pormenores, excepto os que o título reclama. Não se trata disso, nem o pudor to permitiria. Foi a Mãe. Morreu. Ias escrever, partiu, mas não, isso não passa de eufemismo cobarde, palavreado para enfeitar a realidade - e não és dada a enfeites, ao menos desse tipo.

Passas a escrever-lhe uma carta por noite, embrulhada em lágrimas contidas longos anos. O dia é outra coisa, é o tempo da normalidade, do trabalho, da resolução de problemas (e que problemas sobrevêm!), da resistência à quebra de afectos adquiridos (calha, circunstâncias da vida!), do apoio dos amigos (uma delas frequenta este blog, sabe do que falas e nunca te cansarás de lhe agradecer o apoio!). Enfim, é a vida, em toda a sua dimensão, do lógico ao absurdo. Também a força e o espírito guerreiro... Quer dizer, garante-se o equilíbrio no fio da navalha, caso para afirmar que a sobrevivência sobrevive!

O hábito das cartas nocturnas desvanece-se, a lembrança continua presente, em cada pormenor, o desgosto é enorme.

Desenrola-se um doloroso ano e meio e chega o outro telefonema,  não tão inesperado, outro dia maldito, um 30 de Janeiro. O Pai morreu (e não, não ias escrever partiu).

Renova-se a escrita das cartas nocturnas, embrulhadas em lágrimas, menos líquidas, que há pesos que até o choro turvam. As cartas acabam por cessar, a memória persiste. A recordação magoada reune o que a morte separou e, agora, voltou a unir. Sempre os conheceste juntos. Talvez seja um luto único. Magoa. Muito. Em qualquer pequeno pormenor está impressa a presença da ausência. Dos dois, feitos um. Um luto. Muita mágoa. Demasiada, vivida por dentro, sem deixar transparecer. Sobretudo sem deixar transparecer. Esconder o sofrimento, sempre. Por pudor. Porque não te interessa a solidariedade na miséria. Dispensas. Porque não aguentas a insensibilidade face à miséria. Ou, talvez pior, a agressão. Evitas. Porque já conheces da vida o suficiente para saberes que cada um tem  as suas dores.

O tempo passa. A vida impõe-se, em todo o seu despropósito, quer dizer, na soma de rotinas, incongruências, esperados e inesperados, nada de especial interesse. Impões-te à vida, quer dizer, aguentas e segues. E desfrutas do que podes. Eles, os mortos feitos um, Mãe e Pai feitos Pais,  continuam a acompanhar-te em mil recordações e vazios diários. Compreendes, na pele, o que é a vida para além da morte ou, por outras palavras, a eternidade das almas: a permanência na memória dos vivos, ainda que dum só vivo. Não passa disso.

A vida alegra-se com a (tão desejada) chegada duma nova geração à família. Pouco a pouco, voltas a sentir o Natal - que já deras por morto e enterrado - na plenitude do entusiasmo infantil. Dádiva inesperada e agradecida. Mas a memória, a recordação, persiste, insiste. Continuam e continuarão a viver enquanto assim for. A nova geração vai florescendo e é junto dela que perdes o pudor de os recordar em voz alta. Falas-lhe neles, sempre a sorrir, queres perpetuar-lhes a lembrança para que sejam eternos. As crianças são atentas e maravilhosas, gostam de ouvir histórias de família. Interessam-se. Fazem perguntas.

O tempo passa. As lágrimas vão-se perdendo na corrente do tempo. Continuas a lembrá-los diariamente. Continua a custar-te revisitar os cenários de partilha das vidas cortadas. Invadem-te pesadelos, em vez de sonhos belos, excepto um, numa madrugada dum teu aniversário: ela, a Mãe, debruça-se sobre ti, com toda a ternura dum sorriso resplandecente e estende-te uma rosa. O melhor presente de aniversário. Referes-te a presentes sonhados e não àqueles que costumas receber. 

O tempo passa. Já lá vão dezasseis anos. A recordação começa a interromper a sua rotina diária. Os pesadelos seguem-lhe o abrandar. Todavia, de vez em quando, a dor, agora morna, assalta-te, com toda a crueza do desespero profundo, em sonhos esparsos e vívidos. Acordas com a certeza de que, ao abrigo da noite, algum duende maligno abriu a caixinha para onde, afinal, empurraste o sofrimento. Sentes um enorme alívio. Agora é dia, o duende maldito ficou preso nas malhas da escuridão. Com sorte, não se lembra de ti tão depressa. Terá outras caixinhas a desinquietar, espalhadas pela arrumação doutras vidas. 

O tempo passa. Já lá vão dezoito anos. Constatas que a recordação perdeu a cor. Achas estranho. Muito estranho. Se o tivesses que descrever numa palavra dirias, longínquo. Acrescentarias, talvez, desfocado. Ocorre-te a asserção gasta, o tempo tudo cura! Não, não te parece que se trate de cura. Apenas um - como dizer? - evoluir. Não se trata de ter feito o luto, que, de resto, não é nenhuma doença. Muito menos de o ter ultrapassado. Sucede, apenas, que te encontras numa nova fase. A ausência magoa duma forma diferente, porque, agora, se aproxima do esquecimento. Não, não é bem isso, talvez seja uma espécie de afastamento, um longe. Uma ameaça de vazio, velada por um manto de absurdo. Até as lágrimas  manifestam uma recusa surda, presas que ficaram num qualquer nó do tempo. 

Assim como não rejeitaste a dor - não por masoquismo, mas porque não houve maneira - não rejeitas esta espécie de desafiadora ausência de dor. O teu lema é enfrentar. O orgulho e o espírito guerreiro encarregam-se do resto.

O tempo passa. Ainda não encaixas bem esta nova fase. E resumes, (como sempre) sem dramas: sinto saudade de ter saudades! Alguém comenta que a frase daria um bom título para um livro. Respondes que a tens pensada para título dum post do teu blog.





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