segunda-feira, 4 de julho de 2016

DISCURSO A JUDAS


Tinha acabado de atingir o topo do penhasco. Subira com passos largos e rápidos, como se empurrada pela mais aflita das urgências. Os ténis, na realidade azuis, pareciam esfregões acastanhados, tal a camada de poeira grossa que os surpreendera no percurso. As jeans colavam-se-lhe à pele e os cabelos desgrenhados à cabeça, efeito de escorregadia camada de transpiração. A ascensão revelara-se dura, embora não tão dura quanta a dureza do discurso que preparara para lhe debitar. Até o vento, responsável pela camada de poeira espessa que lhe tingira os ténis, era escaldante. Transportava assédio em vez de alívio. Por falar em assédio, não seria assédio o que se preparava para fazer? Interrogação breve e logo apreendida, que os vingadores e justiceiros não costumam deter-se em questões de consciência, convictos que estão da superioridade das suas razões. Aquilo, a interrogação, fora puro momento de fraqueza, talvez efeito do sol a pique sobre a cabeça destapada, acompanhando-a, na penosa mas decidida escalada, com a persistência e a fidelidade das determinações irrevogáveis.

Espalhou o olhar em redor, mas não o viu. A certeza estremeceu-lhe, por efeito de repentina e inusitada dúvida, ter-se-ia enganado no local? Mas não, os vingadores e justiceiros nunca se enganam, conhecem bem o objectivo e o ponto de chegada, elegem cuidadosamente o percurso mais funcional, a infalibilidade é a sua marca. Estava apenas a olhar na direcção errada, mero deslize, talvez devido à extenuação da subida, à pressão daquele sol fosco, tapado por nuvens vermelhas de sangue estagnado, a empurrá-la para baixo e a interferir-lhe com a retina, como fogo a brincar com crianças desarmadas. 

Deslizou as mãos tensas e inquietas pelas longas coxas, deixando largos traços de suor, um de cada lado, estradas simétricas dirigidas para o fundo, parecendo apontar uma vertigem de vazio. Para o fundo. Era isso, lembrou-se de espetar os olhos lá em baixo. Desvio inesperado, afinal esperara encontrá-lo ali, no cume do penhasco. Vingadores e justiceiros não costumam depender de desvios, tal a certeza dos seus desígnios. Todavia, por vezes, necessitam dum inesperado jogo de cintura. Há que reconhecer.

E era mesmo lá no fundo, metade para cada lado, como boneca de porcelana feita em fanicos, que ele se encontrava, aliás, jazia. Já pronta para descer, em largas passadas escorregadas, deteve o olhar num galho raquítico duma árvore raquítica das poucas árvores raquíticas que por ali se erguiam a custo, toldadas pelo rodopio da poeira seca e pelo desprezo da humanidade. Do galho pendia um resto de corda perdida a meio dum rasgão imperfeito e, tudo indicava, violento. Encontrou-lhe o resto lá em baixo, à volta do pescoço magro dele, último enfeite duma vida desperdiçada. Não foi isto que ela pensou, evidentemente. Os vingadores e justiceiros não se detêm em tal tipo de reflexões. Fazem o que têm a fazer e, orgulhosamente, passam à missão seguinte, como quem come tremoços de enfiada.

Lá em baixo a desolação não era menor, a mesma secura, o mesmo ar queimado pelo incêndio do sol toldado. Pairavam aves estranhas, prontas a atacar, apenas aguardando a partida dela. 

Finalmente podia debitar o discurso. Com a secura altiva duma tacada certeira de campeão de snooker, penetrou os seus olhos nos dele - sem sequer reparar que estes já moravam, irremediavelmente, para além das pálpebras descaídas como persianas mudas - e disse:

- Muito bem, Judas, foi de homenzinho, isso de ires a correr suicidar-te, depois de teres traído o teu amigo e mestre, a troco de meia dúzia de euros! Parabéns!

Ele não respondeu. Por motivos óbvios.





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