quinta-feira, 3 de setembro de 2015

E, NO ENTANTO... NADA


As paredes jaziam, raspadas de velhas, cal sobre cal, pó sobre pó, dedadas, restos espirrados, sujidade de tempo acumulado, raspadas de tentativas frustradas de branqueamento, como cabelos mal pintados, de raízes à mostra, traços de branco, giz, aqui e ali, atraiçoando desígnios de disfarce. Levantavam-se, na vertical, é certo, mas pode dizer-se que jaziam, como pessoas erguidas, cujos olhos rastejam pelo chão, atraídos por nenhuma outra força que não a da gravidade.
Sentado na cadeira exausta, tomada dum equilíbrio instável, ameaçando derrota próxima, portanto, mais incerta que a sua própria, que era derrota há muito consumada, fixava-se naquelas paredes-testemunha, as tais paredes jacentes, embora na vertical, paredes que tinham servido de ouvido a palavras e silêncios de natureza vária, de espera, espécie de esperança, que a espera é ainda uma ponta de esperança, se não a esperança mesma, de incerteza, que é uma esperança em vias de revolta e de extinção, de raiva, que é um murro fechado na boca das esperanças mortas, de dor, de réstia, réstia de tudo o que costumava ser e já não era, nunca mais seria, e, no entanto…
- Então, Sr. Joaquim, a esperança é a última a morrer, vá lá, anime-se! Hoje é dia de arroz doce, aquele de que gosta tanto, não diga nada aos outros, guardei-lhe uma tacinha extra, anime essa carinha, sorria, ainda que seja só para mim, só um sorrisinho!
E ele calado, a fingir-se de mudo, a fingir-se de morto, e a pensar, que patético, tacinha, carinha, sorrisinho, deve pensar que tenho cinco anos ou por aí, deve pensar que o arroz doce me consola destas paredes sinistras, coladas dos restos de tantos sussurros e gritos e silêncios e mortes. E, no entanto…
Entreabre-se a porta, de mansinho, como se uma dúvida - entro, não entro? -, como se um receio - vale a pena, não vale a pena?, arrisco, não arrisco? - e lá vem ela, de sorriso hesitante, que a ausência é longa e o receio não lhe fica atrás.
- Olhe quem está aqui, Sr. Joaquim, a sua filha, eu bem lhe disse para se animar! Vou deixá-los os dois, devem ter muita conversa a por em dia. Depois volto com o arroz doce, não se esqueça, tacinha extra…
Esforça-se por não desviar os olhos da parede, há alturas na vida em que não convém desabituarmo-nos dos horizontes garantidos, por maus que sejam, sobretudo por isso, mas não consegue resistir, embora fingindo desinteresse, como se procurasse algum objecto distante, outra parede, de preferência menos, menos, menos aquela.
Não estende a mão para receber o embrulho, nem a cara para segurar o beijo, as palavras continuam caladas dentro da sua boca de lábios descaídos, maldita seja a força da gravidade, que, enquanto jovens, nos atrai para cima, é a força da leveza, e depois nos chama para baixo, sempre mais para baixo, como se voar não devesse ser possível, coisa lixada, ao menos para quem gosta das alturas.
Enquanto ele divaga para dentro, ela divaga para fora ou por fora, circula os olhos arredios pelas paredes, merda de paredes, bem podiam aplicar-lhes uma camada de tinta garrida!, sempre animava os velhos, aqueles restos entretidos à espera, à espera, à espera
- Pai, não pude vir antes, tenho tido uma vida super ocupada, sabe como é, o trabalho … 
E eu com isso, pensa ele, enquanto ela prossegue o monólogo de desculpas esfarrapadas e de culpas escancaradas, amassando o embrulho com dedos nervosos, carregados de anéis, ou serão anilhas?,  pensa ele, agora divertido, alheado da parede mesquinha, já para além de si e, sobretudo, para além dela, daquela filha. O último a morrer é mas é o sentido de humor, qual esperança, qual quê!, continua ele para consigo.
A Teresa entra com a taça de arroz doce na mão, pergunta se não está a incomodar, que não, claro que não, responde a filha, aliviada com aquela presença, é que são horas do lanche do Sr. Joaquim, justifica-se, enquanto ele, distraído da parede, pede canela. Surpresas com aquele desemudecimento, agitam-se à sua volta, - Sr. Joaquim, Pai, está a ver que consegue falar?! E ele, regressando ao interior, - parecem duas galinhas tontas!
Polvilha o arroz doce abundantemente, muito abundantemente, com a canela, fina chuva castanha por entre os furos da tampa do frasco, e, terminada a tarefa, faz uma pausa como que a criar suspense, dirige um olhar malandro a cada uma delas, à vez, primeiro à Teresa, depois à filha, saboreia-lhes a inquietação, e depois, num gesto de força resgatada sabe-se lá onde, atira a taça contra a parece, no meio duma gargalhada rouca e fraca, enfim, com a força de que é capaz.
Recolhe-se ao mutismo para não mais as olhar, fixos que lhe pendem os olhos, na parede.
E, no entanto... Nada. Em absoluto.








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