sábado, 11 de julho de 2015

PALAVRAS CALADAS, GESTOS MUDOS


Não entendo o que te deu, de repente iniciaste um murmúrio, como quem reza a nenhum santo, como quem entrega palavras ao vento que passa devagar ou se limita a deixá-las cair, sem qualquer intenção de arremesso, nem zanga nem mágoa nem resignação, apenas um cântico da indiferença, da mera constatação, liberto de juízos, melindres ou acusações, como quem está tão de fora, do lado do além, que só pode ter mergulhado fundo, por dentro, ultrapassado as paredes de si e, com elas, o desgosto, o irrealizado, o conto dos amores desfeitos, e começaste a dizer: 

calam-se as palavras do desejo
poupam-se os gestos da ternura
prendem-se os beijos
desaprende-se o sonho
fecham-se os corpos, hirtos
apagam-se as luzes 
resta a penumbra 
uma réstia
resta uma réstia de penumbra
para ver
apenas
o filme
das ausências
para lá das ausências
na paz 
da simples
observação

Espantei-me para ti, como quem interroga, o que estás a dizer, isso é contigo, é de ti que falas, nessa abstracção de desenganos, nessa calma de quem reza mas não é a santos? E tu, nada, nem sequer me retribuíste o olhar! Já te perdias nas próximas palavras, talvez, nessa litania sem o ser. Vestiste o casaco, levantaste a gola, que estava frio, já ia estando frio, olhaste para fora e, de repente, já de saída, rodaste o corpo na minha direcção e disseste, sabes, apetecia-me chuva, que chovesse, quero dizer. Derramei-te a minha perplexidade, esquecendo-me que sempre gostaste de chuva e perguntei, sem jeito, chuva, apetece-te chuva, mas porquê? Já estavas de saída, nem ouviste a pergunta, já ias longe, mas continuava o tempo seco. Pensei e, ao mesmo tempo, disse, como quem reza a nenhum santo, como quem entrega palavras ao vento que passa devagar ou se limita a deixá-las cair, sem qualquer intenção de arremesso, nem zanga nem mágoa nem resignação, apenas um cântico da indiferença, da mera constatação, liberto de juízos, melindres ou acusações, como quem está tão de fora, do lado do além, que só pode ter mergulhado fundo, por dentro, ultrapassado as paredes de si e, com elas, o desgosto, o irrealizado, o conto dos amores desfeitos, disse:

cala-se a chuva
até a chuva se calou

Espanejo os cabelos,  e é a minha vez de sair, preciso de apanhar ar, visto o casaco, levanto a gola, que está frio, já vai estando frio, bato a porta, coloco os olhos em modo de ver e estás lá, e, como se nada fosse e nada importasse, dizes, estava à tua espera, vamos? Ou terá sido uma ilusão, porque, como começaste por dizer,  calam-se as palavras...  Calam-se as palavras do desejo, foi o que comecei por dizer - corriges. 

Seja, engolem-se as palavras do desejo... 







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