sexta-feira, 17 de julho de 2015

MORREM MAIS DE MÁGOA


Quando li este título dum livro do Saul Bellow - Morrem Mais de Mágoa -, podia ter pensado numa frase que, ouvida repetidas vezes, por alturas da adolescência, me suscitava uma certa sobranceria. Morreu de desgosto, era a frase, que, acompanhada dum empático coitadinha, se referia a uma senhora - creio que a D. Guilhermina, da sapataria... -, que expirara do coração, depois de inúmeras traições maritais. Para mim, era do domínio do inconcebível que alguém pudesse morrer de desgosto e, para mais, por um tal motivo. Enfim, pouca vida, quero dizer, vivência. Hoje, muito tempo depois, já percebo que alguém possa morrer de desgosto, pelo motivo mais improvável, sobretudo se se entender como morte a recusa ou impossibilidade de viver (mesmo continuando vivo)...  
Não é que tenha pensado nisso, na tal frase e no mais, mas fiquei curiosa sobre que causas de mágoa/morte versaria o livro e criei a ideia de que talvez pudesse tratar-se duma narrativa pungente, de tom magoado. 
Puro engano, felizmente! O tom deste romance nada tem do (tipo de) dramatismo que o título possa sugerir. Não que a história não contenha elementos dramáticos, mas é abordada com uma notável dose de  distanciamento crítico, tecido, com mestria, numa base de racionalismo e objectividade. No entanto, versa sobre questões tão subjectivas como sejam as relações de amizade, aliás, elevadas ao grau duma invulgar cumplicidade, entre um tio e um sobrinho - o narrador -, como pano de fundo para o discurso sobre as dificuldades de ambos - por razões bem diversas, apesar de, eventualmente, remetidas a uma matriz comum (de individualismo e solidão) - em estabelecerem relações amorosas gratificantes - face aos seus padrões de expectativa e, já agora, aos padrões socialmente dominantes. Assim, o narrador vai-nos contando o percurso amoroso do tio, enquanto nos desvenda o seu, embora aparentando conferir-lhe o nível dum segundo plano e dissertando em termos que, por vezes, se revelam quase ensaísticos, sobre vários assuntos, pessoais, sociais e políticos, o que faz num tom surpreendente, pela argúcia de observação psicológica, pelo humor, de marca irónica, e, sobretudo, por uma cativante actualidade, que me deixou francamente rendida. Abro um parêntesis para salientar que este último aspecto pode considerar-se indicado no próprio texto (de forma mais ou menos subliminar), quando o Autor coloca na voz do narrador as seguintes observações: "Embora ela fosse apreciadora de Balzac, os seus interesses mais profundos estavam tão longe do mundo contemporâneo como os do marido. Quando nos metemos na vida quotidiana, podemos ser apanhados pelo pescoço, mas se, por outro lado, nos recusarmos a entrar nela nunca se perceberá nada." (p. 356) e, mais adiante: "Contudo, o certo é que, sem tais dons, não havia forma de compreender a América, e de que servia batalhar por compreendê-la se falta a aptidão? E possuo uma forte tendência para ser contemporâneo, se assim não fosse estaria, se calhar, a discorrer sobre a Grande Muralha da China. " (p. 365). 
A acção é conduzida com doses precisas de teasing, que nos ajudam a manter o foco no fio condutor - a história do tio - pelo meio dos interessantes (aparentes e abrangentes) desvios com que nos vai presenteando.
Também a merecer destaque, a exitosa fuga aos lugares comuns, com frases deliciosas, que dizem tanto em tão pouco e dum modo tão original, como quando refere: "Eu observava atentamente o tio Benn. Conhecia o seu rosto do direito e do avesso. Quando estava bem, era como a Lua antes de termos lá poisado;"  e "Matilda precisava de tirar medidas ao apartamento de Roanoke, que herdara da tia, e levou Benn com ela para a ajudar a segurar na fita métrica." (respectivamente, pp. 154 e 188, sendo os sublinhados meus). 
Acresce uma particular evidência do fenómeno da intertextualidade, traduzido nas constantes referências a outros escritores (sobretudo, os clássicos franceses e russos, em linha, aliás, com a própria biografia do personagem-narrador, de formação francesa e professor de literatura russa).
E a razão do título? A este propósito e não querendo adiantar mais, limito-me a deixar, de resto, sem qualquer compromisso, umas frases em que fui reparando pelo caminho da tão grata leitura deste óptimo romance: "Bom... concordei que era mau, mas por fim disse: "É terrivelmente grave, claro, mas acho que morre mais gente de mágoa do que de radiação."" (p. 109); "E pode seguramente calcular-se que morre mais gente de mágoa do que de radiações atómicas, mas não existem movimentos de massas nem manifestações de rua contra ela." (p. 251); "- Não a afastou, Treckie, o seu comentário foi que morre mais gente de mágoa do que de envenenamento por radiação." (p. 404).
Quanto ao cerne da questão, esse, para mim, está sintetizado numa certa (e magistral) passagem, situada na página 395...
Alguém quer ler o livro, encontrá-la e deixá-la aqui em comentário? Gostava que alguém o fizesse ... e fico à espera!







  

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