quinta-feira, 5 de março de 2015

GATO PRETO, SEXTA-FEIRA TREZE


I

Sempre detestei a superstição! Assim, no meu modo de ver, o sucedido e, em particular, o desfecho, nada teve a ver com superstição.
Aconteceu simplesmente que, naquela sexta-feira treze, dia enevoado e morno, galguei as escadas marmóreas dum prédio em construção, até ao terraço do 13º andar, à procura do meu gato preto, de nome Sortudo, que, uma vez mais, na sua característica atitude de desafio, se escapulira da minha pessoa e, cúmulo do descaramento, dos meus insistentes chamamentos.
Cheguei lá acima sem sombra de fôlego ou vestígios de gato, sob um coro ascendente de protestos dos operários, que, estarrecidos pela ousadia de tamanha irresponsabilidade, me instavam a retroceder. Bem, também ouvi um ou outro assobio admirativo, assim tipo piropo, não sei se pela agilidade demonstrada, se por outra coisa, quero crer que por outra coisa. Todavia, nada me demoveu da urgência maternal de recuperar o desobediente felino.
Mais desesperada do que estafada, olhei à volta, rodando-me 360º, qual dervixe, sem vislumbrar sequer um pelo negro, quanto mais o Sortudo. Antecipando o pior, abeirei-me do limite extremo do terraço, ainda desguarnecido de protecção e, esquecendo-me de que já ouvira referir um fenómeno chamado vertigens, olhei para baixo, concentrando-me noutra coisa que também já ouvira, a saber, que os gatos têm sete vidas e, para além disso, caem sempre de pé. Ainda tive tempo de pensar que devia ser essa a razão por que escolhera um gato, também eu tinha por hábito cair de pé…
Contudo, o momento não era para reflexões, até porque, boquiabertos e de capacetes enterrados na cabeça, já meia dúzia de operários - bem, não é que os tenha contado… - formavam uma espécie de guarda suspensa à minha disparatada pessoa, agora com o cabelo num desalinho de vento, as faces acesas numa labareda, os olhos num espanto esbugalhado e, pior, os braços agitados num equilíbrio instável, pois acabara de aterrar na consciência de que, a) o gato voava sem asas, b) eu nem com asas conseguiria voar e, vista daquela perspectiva, uma altura de treze andares equivalia mais ou menos à distância da lua à terra.

II

Foi aí que um dos operários, como se tivesse poderes de representação dos restantes, que, aliás, sublinhavam as suas palavras com acenos afirmativos de cabeça, disse, por entre uma lividez que procurava disfarçar, tentando mostrar-se o mais calmo possível, quer dizer, nada calmo: 
- A senhora tenha calma, aguente-se, que nós vamos buscá-la, não olhe para baixo… 
Nos seus olhos, quero dizer, nos olhos de todos eles, transparecia a antecipação do meu corpo esfarrapado no maldito asfalto, que sabiam tão perto e queriam acreditar tão longe, apesar da conjugação sexta-feira treze, 13º andar e gato preto não augurar, à luz das suas trevas, nada de bom.
O representante, talvez de nome José, adiantou-se cauteloso, com um braço quilometricamente estendido, enquanto eu balançava, agoniada pela visão longínqua duma espécie de formigas com duas pernas e dois braços, acumuladas lá em baixo, no longe, de cabeças esticadas para trás e para cima, num ameaço de pescoços partidos. Repetiu, por palavras semelhantes, a mensagem anterior, enquanto deixava escapar um fumo de pensamento, que repetia, incessantemente, pobre mulher, o que a terá levado a isto?, quem sabe se o marido lhe bate, se é que tem marido, se lhe morreu algum filho, talvez tenha perdido um amante ou o emprego, que isto da crise toca a todos, mas não, não se justifica uma atitude tão estranha…. Pois não - concordava o pensamento doutro, talvez de nome António -, especialmente porque vai sobrar para nós; se a tivéssemos impedido, não estávamos agora neste apuro, ainda vão dizer que a culpa foi nossa, é o que eu digo, sobra sempre para os mesmos, ela a ficar na paz dos anjinhos e nós a levar uma valente descompostura do patrão, isto se não lhe der para nos despedir… E logo a outro, talvez de nome Boris, lhe ocorreu lembrar-se do tio da mulher do primo que, tendo sido deportado por razões políticas, não aguentou a tortura do afastamento, para não falar doutras, e acabou com a vida, mordendo os pulsos até o sangue espirrar que nem água de torneira avariada…
É espantosa a quantidade de pensamentos deslocados que se expandem na imensidão dum micro-segundo, consegui ainda - e estranhamente - pensar, no instante em que os dedos do operário avançado não conseguiram segurar-me e, no derradeiro instante de tentativa e esforço, cedi ao desequilíbrio anunciado, escorreguei para a brisa morna e cinzenta daquela atmosfera em que vogavam dois ou três pelos negros do Sortudo, que habitava, meio atordoado, os braços do Francisco, após ter aterrado num fofo monte de areia, despojo da construção, assim confirmando o acerto do nome.
Mesmo sem espreitarem o abismo, os operários precipitaram-se escadas abaixo, entre a frustração e a zanga por não me terem conseguido salvar, a tristeza pela minha sorte e, sobretudo, a curiosidade pela maldita incógnita que a tinha ditado, sem excluir a ansiedade pela antevisão da fúria do patrão e sabe-se lá que mais emoções e pensamentos.  

III   

E lá estavas tu, Francisco, meu melhor amigo, dando colo ao atordoado Sortudo, enquanto olhavas para cima com uma calma contrastante com a agitação histérica das pessoas que cresciam como formigas à volta de açúcar, que a desgraça alheia é assim mesmo, tem o condão de provocar concentrações alvoroçadas e gulosas. 
Tinhas-me visto entrar no prédio, seguindo o resto voador do felino, chamaste-me sem obter resposta, ouviste a algazarra dos operários, somaste uma coisa à outra e logo concluíste não haver nada a fazer, a não ser esperar, pacientemente, que descesse. Só não contavas ver-me chegar tão depressa àquele despenhadeiro do terraço e debruçar-me da borda em equilíbrio instável. Por mera cautela, ligaste ao 112, tentando prevenir a hipótese que se perfilava. Enquanto me sentias arrebatada para o vazio nublado daquele dia, soubeste que consegui ouvir, lá ao longe, o guincho desesperado e desesperante do carro dos bombeiros, numa pressa despropositada, porque impossível de cumprir com a velocidade do acontecimento.
De resto, nunca te rendeste, limitaste-te a afagar o gato e a fixar os olhos no meu deslizamento, como se a força do teu olhar conseguisse anular a força da gravidade. E acreditavas mesmo nisso.
Por isso não te admiraste quando, num repente, soprou um vento tão forte e ascendente que me transportou, num ápice, restituindo-me à beira do terraço, para logo amainar, numa calmaria só igual à tua.
A força que os teus olhos tinham emitido transfigurou-se num sorriso alegre, ao mesmo tempo que levantavas os braços, acenando-me um adeus que era também um chamamento e deixando cair o gato, agora totalmente recuperado.





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