Encostada
ao portão verde, acabou por se deixar adormecer, na longa espera até às três da
tarde, hora da chegada pontual de Vladimir Blue. Valeu-lhe o latido do cachorro
branco da véspera, mesmo a tempo de surpreender a entrada do outro. Mais uma
vez deixara escapar a sua procedência, tinha que se por mais atenta. Como na
véspera – e como nos múltiplos dias que se seguiriam – acompanhou,
cautelosamente, o percurso apressado de Vladimir Blue até ao banco de trás do
recato da velha arrecadação, e esperou que este começasse a murmurar, o que,
após longa meia hora de inquietação exacerbada, em que as mãos nodosas pareciam
rebentar a resistência exausta dos bolsos da gabardine, acabou por suceder. Então, num esticão imobilizador,
como quem toma uma decisão súbita, mas inevitável, Vladimir Blue começou os
murmúrios, por entre a cal estalada dos seus lábios ressequidos.
Naquela altura, Natasha estava feliz e, como
tal, parecia ainda mais bonita, com o brilho dos olhos verdes reacendido e o
dourado dos cabelos a reluzir em ondas sobre as costas, como se fosse um mar
batido pelo sol de fim de tarde. O corpo franzino não perdera a elegância, nem
sequer interrompida pela curta barriga lançada para a frente, orgulhosamente adiantada
aos passos saltitantes, qual excrescência de felicidade sobrada do lodaçal do
desvario amoroso, que, tão brevemente, se transformara no inferno que já se
sabe. Sim, a violência de Piotr não datava da notícia da gravidez, antes se
revelara na aquisição da posse, quase logo a seguir à entrega que, de si
própria, lhe fizera Natasha, debandada da casa materna, sem arrepio de remorso
ou nostalgia, tal o amor que sentia por ele ou, pelo menos, julgava sentir.
Mas, agora, ela estava feliz, não pensava nisso, nem sequer na vitória da
libertação, conseguida com esta nova fuga, o decidido e vitorioso abandono de
Piotr. Então, o seu objectivo foi escolher nome para a criança, e o nome foi
Vladimir, da cidade por onde passara na sua única viagem feliz, e Blue, dum
cachorro de desenhos animados, que o pai lhe dera a conhecer e de que lhe
oferecera uma réplica em peluche.
E assim fiquei a chamar-me Vladimir Blue – articulou o próprio, para além dos simples
murmúrios, novamente com o brilho no olhar habitualmente esvaído, pois sabia do
carinho que lhe ditara a identidade.
Portanto, chama-se Vladimir Blue – comentou a Sombra consigo própria, talvez um
pouco confusa com a origem daquele nome.
Mas que importa a estranheza dum nome se foi escolhido com tanta ternura! - pensou,
enquanto notou a espécie de luzinha saída do fundo dos olhos de Vladimir Blue,
que parecia ser sinónimo de sorriso, o único equivalente de sorriso que aqueles
olhos tinham sido capazes de revelar, ao menos até ao presente.
O pai de Natasha desaparecera no mar da
pesca, sem retorno sequer dum resto de corpo carcomido pelos peixes. Partiu uma
madrugada, como tantas outras, o mar encheu-se de raivas, as nuvens desceram,
ocultando tudo quanto havia para ver, e o resto era o mistério, não tão
misterioso assim, dum barco a dar à costa, em momentos e pedaços sucessivos,
como se peças desconjuntadas dum puzzle desconstruído pelas mãos duma criança
inábil. Os corpos dos dois companheiros ainda apareceram, no espaço de dias
soltos e angustiados, preenchidos pelo choro e as rezas das viúvas e dos
filhos, aglomerados na praia, mas, como já foi dito, o do pai de Natasha nunca
mais foi visto, sugado pela boca raivosa do mar, ao que todos supunham, pela
ordem natural das coisas. Mas Natasha ainda não saíra da infância, não
ultrapassara os seis ou sete anos e, como tal, ainda desconhecia a ordem
natural das coisas e, fosse por isso ou por outra razão qualquer, quando a mãe
e todos os outros já tinham desistido, continuou a ir todos os dias à praia,
onde, aconchegada numa rocha como pássaro em ninho, esperava, convictamente, o
regresso do pai, sempre acompanhada do seu cãozinho de peluche chamado Blue.
Assim se perdia e gastava o verde dos olhos, perscrutando o longe do mar horas
a fio, naquela espera que era mais do que esperança, embora um pouco menos do
que certeza absoluta, não que ela soubesse tais distinções, por essa altura.
Por vezes, parecia-lhe ver o corpo atlético do pai a emergir do mar, num passo
lento mas determinado, pisando a areia na sua direcção, e, então, largava o
ninho da sua rocha e corria na direcção daquela figura curtida pelo sol e pelo
vento, sorrindo e gritando, pai, pai. Depois, como o pai se tornasse mais longe
até desaparecer num vestígio de segundo, ela estacava, perplexa, engolia o som,
iap, iap, que se lhe prendia na garganta enrolado num soluço seco, deixava-se
cair, mesmo na fímbria do mar, ao alcance da espuma da última onda, e batia com
as pequenas mãos na areia, enquanto Blue a observava aflito, na sua impotência
de boneco de peluche. Assim a encontraram várias vezes, restituindo-a à escola
ou a casa da mãe, donde fugira em direcção à promessa incumprida do mar ou do
pai, umas vezes dum outras do outro, consoante vertia as culpas do insucesso
num ou noutro, no mar porque não lhe devolvia o pai, no pai porque não se lhe
devolvia, um ou o outro eram, assim, os seus carrascos, os responsáveis pela
sua espera infrutífera, da qual, todavia, nunca chegou a desistir, ao menos até
ter ultrapassado a barreira do pensamento infantil e, com ela, a barreira
(racional) da ausência do ser que mais amava, o pai.
Depois cresceu, ela, a irmã e os dois irmãos,
todos mais velhos do que ela, com intervalos mais ou menos regulares de cerca
dum ano, todos dependentes do trabalho da mãe e da solidariedade dalguns
vizinhos, também conhecedores da inclemência do mar e do seu espírito
democrático, ao menos no tocante à escolha das vítimas.
Era inteligente e estudiosa – a partir de
certa altura, canalizou a crença no reaparecimento do pai para a de que, se
aprendesse muitas coisas, principalmente sobre o mar, poderia arquitectar uma
maneira de o resgatar, desprendendo-o da sua prisão marinha. É assim, a
invenção das crenças também pode servir para alimentar desejos de impossível ou
para camuflar desistências óbvias, não serve apenas para esconjurar medos do
vazio ou do desconhecido.