Natasha cresceu com a
estranheza dos outros estampada nos olhares alheios, mesmo ou sobretudo os da
própria família, que não lhe entendiam o isolamento crescente, primeiro na
rocha-ninho da praia, depois num canto da escola, conforme relato da professora
e gozação dos colegas, e, sempre, no canto do exíguo quarto que partilhava com
a irmã. Aqueles olhares furavam os seus olhos como a ponta de dedos afiados,
por isso passou a baixá-los, do mesmo passo que se metia para dentro, ampliando
o mundo interior com as parcelas que lhe sobravam da incompreensão, quando não
da hostilidade alheia. Nesse mundo, o pai, suspenso no nevoeiro da incompreensão
gerada por aquele desaparecimento sem notícia de regresso ou sombra de
vestígio, ocupava um lugar cada vez maior. Mas como na vida tudo tende à
mudança, uma mudança assombrosa veio a acontecer-lhe.
Atingida uma adolescência
precoce, pouco passava dos onze anos, Natasha decidiu desistir das coisas
incompreendidas e, em particular, do desaparecido, e, em contrapartida, começou
a verter-se para fora, à procura de preenchimento que o seu espírito, já
cansado, necessitava e que, em breve, o seu corpo espigado passou a reclamar.
Sentia coisas vagas e não entendidas, mas que sabia serem impossíveis de não corresponder
e, assim, o seu olhar, outrora mudo, passou a falar aos rapazes.
A estranheza dos outros
continuou, porque já a tinham catalogado e não eram dotados da argúcia, do
tempo ou da atenção necessários para repararem na mudança. De empatia, melhor
nem falar.
Foi assim que voltou a
escapulir-se para a praia, não para o seu antigo ninho de rocha, mas para a
áspera macieza das dunas, passe a contradição, sempre acompanhada por um rapaz,
o seu namorado, como dizia para si própria, embora nem sempre fosse assim.
Verdadeiramente, nem todos a quiseram como namorada, a maior parte apenas quis
o seu corpo para despejar as febres duma adolescência carregada de borbulhas,
inexperiência, pressa e pouca sensibilidade ou consideração. Por volta dos
treze anos, Natasha passou a ser apontada pelas colegas mais sonsas e pelos
colegas mais abusadores e os mais despeitados, e o som dos dedos apontados
fez-se ouvir em sua casa, até que a mãe foi invadida, olhos adentro, pela
agressão daquele ruído surdo, e, finalmente e com estrondo, pela mudança da
filha, passando o seu olhar da estranheza doutrora a uma estranheza diferente,
que era um misto de raiva, desprezo e vergonha, talvez por uma ordem diferente,
vergonha, raiva e desprezo. Dos esporádicos tabefes que Natasha, quando
remetida ao seu mundo interior, raramente levara, passou-se às monumentais tareias,
merecidas pela sua nova e provocante exteriorização, às mãos iradas e às
palavras duras e estridentes da mãe, quando não dos próprios irmãos, os
rapazes, que a irmã, tomada de pacatez e recato, não partilhava, embora apenas
por lhe ser indiferente a sorte da mais nova.
A vida de Natasha evoluiu
para o descuido dos estudos, na desilusão adquirida de nunca poder vir a
aprender nada que lhe permitisse resgatar o pai, único desígnio a que, até
então, se propusera - o resto, a sua entrega aos rapazes, não era desígnio, era
apenas necessidade de preencher algo que ainda ignorava tratar-se dum vazio,
embora também duma necessidade natural precoce. Mas, um dia, tomou consciência
disso, dessa ideia de vazio – traduzida em necessidade de ternura e de futuro,
ela que, após a partida do pai, tinha vivido na ignorância dos afectos e na
obsessão de resgatar o passado, o mesmo é dizer, no desejo dum futuro
impossível e irrealizável -, coisa percebida por contraste com o que recebia em
troca da sua dádiva ou da dádiva do seu vazio aos apetites dos rapazes. Passou,
então, a centrar-se numa nova ideia, preencher aquela fome de amor, que a falta
do pai e a hostilidade crescente da mãe lhe haviam deixado como ferida aberta.
Aí chegada, jurou a si própria que a era das tareias tinha acabado. Cerrou os
dentes para não chorar. Cerrou o corpo para não se desperdiçar. E aguardou, num
novo recato. Ele havia de surgir para a resgatar, o amor sonhado, O AMOR. Tinha
15 anos. Readquiriu o interesse pelos estudos, recomeçou as leituras
interrompidas por aquele período de experimentação do corpo, mas não se fechou.
Apenas se recatou, não deixando, todavia, de se mostrar diferente na atitude,
tão diferente que parecia impossível ser a mesma das dunas. Reflectia nisto,
orgulhosa da sua decisão e capacidade de realização, esperançada no futuro
desejado, contidamente inquieta na sua espera. Reflectia, também, em como, até
então, a sua vida estava tão ligada à praia, primeiro o mar maldito, depois as
dunas malditas, deixando-se enredar numa suspeita – ou seria ameaça? – de mau
augúrio. Sucedeu isto enquanto passeava pela praia, só e um pouco distraída.
De tão distraída, nem
reparou no modo intenso como era observada por um homem que caminhava em
sentido contrário. Esse homem viria a ser Piotr e viria a confirmar que a praia
nunca haveria de lhe trazer nada de bom. A sua próxima demanda teria de ocorrer
bem longe do mar roubador, das dunas exploradoras, da praia sedutora e cruel.
Foi o que veio a concluir mais adiante, que o futuro só se revela quando já é
passado.
Piotr, o homem maduro, 15
anos mais velho do que ela, dotado dum corpo alto e musculado e duns grandes
olhos negros, que mergulharam no verde lago dos olhos de Natasha, como se uma
invasão de convites e ilusões. Sim, Piotr tinha-se mostrado deveras sedutor e
protector, e ela, na inexperiente inocência dos amantes crédulos e carentes,
tinha-se deixado arrastar nas promessas dele. A experiência anterior com os
rapazes da escola não lhe servira para nada, naturalmente, porque as regras
destes eram diferentes das de Piotr, tão diferentes, desde logo na falta de
mentira, embora traduzida em pura boçalidade.
Não houve dunas, porque
Piotr a levou para um motel e, mais tarde, para casa, onde acabou por se
instalar, fugida da casa da mãe, que, mais uma vez, não tivera tempo, argúcia
ou atenção – de empatia, melhor nem falar - para se aperceber da sua nova
mudança. Depois foi até engravidar e aquilo que se passou a seguir e já se
sabe.
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