domingo, 3 de agosto de 2014

ADORO LIVROS (E NONSENSE)!


E se escrever uma só palavra pudesse ter o sentido dum texto completo, cheio de palavras, vírgulas e pontos finais? Não me parece, usadas e abusadas como as palavras estão, sobretudo as mais importantes, não me parece mesmo nada provável.
 
Creio que todos os escritores (e os que por tal se fazem passar) já escreveram todas as palavras, conjugadas e interpretadas duma forma ou doutra, oferecidas, sonegadas, rasgadas, sei lá que mais!
 
Muda o pensamento, esse sim, não tem espartilho, diferentemente das palavras, presas naquelas letras miúdas, sempre as mesmas, com as mínimas variações dos esporádicos desacordos ortográficos. E, todavia, podem ser elásticas, as palavras, consoante a intenção que sirvam ou o sentido a que dêem luz ou transparência.
 
Por isso, uma só palavra não poderia constituir um texto. Já se imaginou um livro urdido numa só palavra, por exemplo, AMOR? Chegava-se à Livraria Bertrand - gosto da Bertrand, prefiro-a, entre outras, àquela das quatro letras - e pedia-se, tem por aí o AMOR? E o empregado, habituado a livros duma só palavra, como título e como conteúdo, respondia:
- Qual deles?
- Como assim, há vários?
- Sim, pelo menos 20, só de escritores nacionais, se juntarmos os estrangeiros, devem ascender a uns 300 ou 3000, no mínimo.
- Ah!, agora que me diz, sinto-me confusa, não fixei o nome do autor ou da autora, mas sei que foi publicado há pouco tempo e ganhou um prémio qualquer...
- Já sei, deve ser o AMOR, do Manuel Friborg, acabou de sair e já vai na 3ª edição! Na verdade, ganhou o prémio para o melhor uniromance de principiante deste ano. Curiosamente, a cerimónia de entrega do prémio é amanhã, na Biblioteca das Palavras Contadas, ali para os lados do Campo Poupado, conhece?
- Conheço sim, belo edifício, por sinal. E então de que trata o romance?
- Olhe, ainda não li e, como sabe, não tem sinopse, pois corria-se o risco do contra-senso,  quer dizer, de ser mais extensa do que o próprio livro, mas quem já leu disse-me tratar-se duma divagação profunda e inteligente sobre o relacionamento entre as páginas dum livro e a sua capa. Já outro me disse que o tema era a intriga e a futilidade do futebol, e um terceiro sugeriu algo relacionado com a prática da jardinagem, no contexto da evolução das estações do ano. Enfim, é mesmo preciso ler para se ficar a saber.
- Pois, já calculava, é o que sucede com os livros de palavra única, cada qual lê o que lhe vai na alma ou no corpo ou em ambos... Aliás,  não sucede o mesmo com os outros livros?
Talvez, mas não é bem a mesma coisa, não lhe parece?
- É capaz de ter razão, embora se trate apenas duma questão de grau... Olhe, estou a pensar escrever um livro, mas vai exceder uma só palavra, pois não tenho grande poder de síntese.  
- Boa sorte!
 
Vou para casa e escrevo: Título - VAGABUNDAS; Texto: Por vezes ocorrem-me ideias vagabundas. Duvido que passem pela cabeça de mais alguém. Apesar disso, são ideias vagabundas.
 
Mando para a editora e, ao fim dum ano de negociações, VAGABUNDAS é publicado. Sem modificação do título ou do texto. Fico feliz.

O primeiro leitor que me pede um autógrafo, diz-me - sabe, adorei a ideia central do seu livro, a tese de que as ondas sentem ciúmes das gaivotas, sobretudo quando estas bicam a superfície do mar; é essa a ideia que procura transmitir, não é?

Finjo-me de pensadora e respondo - você é, seguramente, o protótipo do leitor inteligente, diria mesmo visionário.

Os olhos dele brilham de felicidade.

O meu próximo livro já tem texto, O leitor feliz é um visionário. Do tudo e do nada faz imaginação. Falta-me inventar um título criativo.


 
 
 
 
 
 
 
 

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