terça-feira, 29 de abril de 2014

A VERDADEIRA ARTE DO BEIJO ÚNICO


 
Tendo sido educada a cumprimentar com dois beijos, deparei-me, há largos anos, com uma moda adquirida por certas pessoas, traduzida na simplificação para um só beijo. Insisto no adquirida, visto me referir a pessoas com educação idêntica à minha, mas que, vá-se lá saber por que razão ou ambição, resolveram mudar de hábitos osculatórios, numa imitação barata daqueles que - eles sim, os genuínos - sempre se tinham cingido a um só beijo.
Ainda me lembro da primeira vez em que me deixaram com a cara pendurada, por assim dizer.
A coisa passou e só daí a muito tempo voltei a sofrer a afronta da bochecha desprezada, embora eu propriamente dita, no meu todo uno, não me tivesse sentido como tal.
Verdadeiramente, achava ridículo este pretenso novo hábito, não por ser avessa à novidade, antes pelo contrário, mas porque, como diria o Diácono Remédios - esse fabuloso boneco do Herman José - não via que houvesse nexexidade, para além de que detesto imitações (por isso, em matéria de marcas apetecidas, só tenho uma mala Burberry e uns óculos Versace, genuínos; devo confessar a possível excepção da mala Louis Vuitton, que veio de Marrocos, não podendo, assim, garantir o respectivo pedigree).
Então, por pura e inofensiva brincadeira, resolvi adoptar a estratégia de colher presas desprevenidas, ou seja, apanhar os beijadores dum só beijo em maré de distracção e cumprimentá-los à sua (adquirida) maneira. Foram momentos divertidíssimos, porque me fartei de abandonar caras penduradas... Mas deixei-me disso, divertimento tem limites e, quando é parvo, cansa depressa.
Mais tarde, deparei-me com uma espécie difícil de conciliar, a dos casais em que um é adepto do beijo só e o outro não se contenta sem os dois beijos, assim tipo, um ser adepto do Benfica e o outro do Sporting (ou vice-versa...). Estes requerem especial atenção, não vá a gente trocar e espetar os dois beijos ao que só está disposto a dar um e, em contrapartida, deixar o outro com a cara à banda - equivalendo a dar os parabéns ao benfiquista, por uma goleada (creio que esta fantástica palavra  existe mesmo!) do Sporting, e vice-versa. Em semelhante caso, muitas vezes baralho-me, mas, como me parece tratar-se dum assunto abaixo de menor, limito-me a dizer coisas do género, lá me enganei eu outra vez, desculpa lá o excesso, fica já um de reserva para a próxima, etc.
Todavia, quando vejo alguma alminha levar o assunto demasiado a peito, a pontos de, talvez, se sentir traumatizada quando não lhe obedecem ao comando de beijo único, encho-me de cautelas, não significando isto que, por vezes, não falhe, estendendo, prazenteiramente, a 2ª bochecha. Afinal, sou humana, e não posso arcar com as idiossincrasias alheias - as minhas chegam-me e sobram-me, uff!
Talvez pensando na minha tendência para o desacerto (neste domínio, entenda-se), um distinto e, aliás, simpático senhor, com o qual me encontro ocasionalmente - aí uma ou duas vezes por ano, em casa de familiares -, descobriu uma maneira fantástica de resolver o problema. Então é assim, em vez de oferecer a bochecha direita, apresenta a esquerda, o que, para uma pessoa avisada (por sucessivos antecedentes de falhanços, ou seja, eu), é sinal inequívoco de que o cumprimento acabou ali e pronto. Estou certa de que, em pessoa não avisada, deve funcionar à mesma, porque ou pensa que o personagem é canhoto (de cara) ou constata que não dá jeito nenhum trocar as voltas às bochechas, sob pena, inclusivamente, de ficar com um torcicolo.
Ora bem, são pessoas assim, cheias de criatividade e empreendedorismo, que admiro!
Deixo aqui a solução, em favor dos adeptos da osculação poupada, que, porventura, ainda não tenham, descoberto a verdadeira arte do beijo único.
   
 
 
 
 
  

segunda-feira, 28 de abril de 2014

VÁ-SE LÁ SABER!



A conversa evoluiu e o filho, talvez de quarenta e tal anos, perguntou ao pai, talvez a rondar os oitenta, e lá por casa, com a mãe, está tudo mais calmo? - Calmo está, se se entender por calmo que não há diálogo nem conversas, foi a resposta.
 
Fiquei a pensar naquilo, uma conversa ouvida ao acaso, na proximidade duma mesa de restaurante, coisa que nem sequer costuma acontecer, visto ser bastante distraída, ou melhor, abstraída, e, sobretudo, desinteressada de vidas alheias.

Curiosamente, quer a pergunta quer a resposta foram proferidas num tom absolutamente neutro, quase clínico. Quem sabe o diálogo deles não passava duma não-conversa, o filho desinteressado da resposta, o pai nada esperando da pergunta! Assim, essa espécie de calma...

Entretanto, paguei a conta e saí. Ignoro o rumo do almoço daqueles dois, ambos impecavelmente vestidos, nos seus fatos/gravata, voz mansa e boas maneiras.

Vá-se lá saber, são as vidas deles!

Só que aquela resposta deixou-me uma série de interrogações, nomeadamente, sobre o sentido de certas convivências ou da sua manutenção, vai dar ao mesmo... 
 
 
 
 

sexta-feira, 25 de abril de 2014

25 DE ABRIL DE 2014: É SÓ ISTO!


Aos Capitães de Abril


Este é um extracto do livro A Arte da Alegria, de Goliarda Sapienza, que acabo de ler.
 
Tendo sido escrito entre as décadas de 60 e 70 do século XX, não deixa de causar espanto o acerto na antecipação duma realidade, a que, infelizmente, hoje se assiste: ... mas o seu sonho (de Hitler) vai-se realizar: uma Europa unida chefiada pelo génio germânico... (pelas palavras de Timur, o personagem nazi). 
 
Pois não é isso o que se verifica hoje, não é isso o que nós, Portugueses, sentimos na pele, especialmente quando, em vésperas de saída da maldita troika, somos ameaçados pela permanência duma qualquer outra forma de permanência troikista? Sobretudo quando, para nós, a união da Europa não passa de unificação pelo domínio, de facto - nunca, de direito, aliás, contra todo o Direito - do mais forte, o carrasco alemão?



Por isso, para mim, dizer 25 de Abril, sempre, não é, apenas, questão de prestar tributo ao passado, mas, sobretudo, de augurar o futuro.
 
O tributo é-o para aqueles Homens que, com determinação e coragem, notável empreendedorismo político, arriscaram até às suas vidas, para retirar Portugal de quase meio século de ditadura, aqueles que ousaram agir, ousaram vencer, e venceram!
 
O augúrio não se concretizará sem idêntica atitude, por parte de todos nós, os que, partilhando os valores ínsitos na Soberania Nacional e no Respeito pelos Direitos Humanos, se dispuserem a agir, a dizer NÃO, sempre que tais valores estejam em perigo, como, aliás, é o caso.  

 
 
Por isso, esta não é uma frase vã, gasta de sentido pela repetição, é um alerta e um desafio, para todos nós, aqueles que, acreditando nos Valores da Democracia, estão empenhados na sua defesa e afirmação.
 
Para além de ser um tributo aos que tornaram possível, por exemplo, coisa tão pouca como a existência deste post, os Capitães da Abril 
 
 
 


segunda-feira, 21 de abril de 2014

A IMAGEM DA IMAGEM


Nem tudo o que não parece não é.
 
Veja-se, por exemplo, aqui a seguir: a princípio, era a imagem única, (julgada) irrepetível, depois surgiu a imagem da imagem (uma das suas infinitas possibilidades de leitura, revelação, multiplicação).
 
Basta saber rasgar horizontes e passar para o lado de lá. Tão simples quanto isto!
 

 
 
 

domingo, 20 de abril de 2014

AMAROMAR


eu amo o mar como quem ama
não importa se azul
se água salgada
se distância infinda
amo os seus vários instantes
quando verde ou cinzento
quando subido em nuvem
quando mesmo aqui, perdendo-se na areia
amo a inconstância dos seus ritmos
planuras de afago
colinas de arrogância
tanto faz
amo o seu ritmo
pertença mútua
divagação
em trânsito
como poderia não o amar, se o amo tanto
como quem ama!



 
 
 
 
 

quinta-feira, 17 de abril de 2014

O COELHO E A TITÁ

Para a Inês
 
Era primavera e floriu mais um, igual a tantos outros e, por isso, diferente, pois tantos outros eram cada um, cada qual. Como os outros, tinha as orelhas arrebitadas, elevando-se da macieza do pêlo, uns olhos vivos, avermelhados, e uns dentinhos da frente salientes, prontos a trincar o que se lhes deparasse pela frente, aspecto em que já era diferente dos outros, que se limitavam a comer cenouras e pouco mais. Ah! e tinha um feitio algo especial, introvertido, fugidio.
Aquele dia estava exuberante de luz e de flores acabadinhas de brotar, harmonizadas numa arquitectura de diversidade, nos formatos, nas cores, nos cheiros, etc. Lá alegres estavam elas, tagarelando em babélica euforia.
Saído da sua toca, ele, o coelhinho ensimesmado, sentiu-se incomodado com tanto bulício. Virou os olhos, procurando um canto com menos desassossego, mas foi em vão, a algazarra rebentou mais forte, quando os outros coelhos da colónia - e eram muitos - se misturaram em estridente e divertida algazarra, estendendo uma toalha de quadrados vermelhos e brancos sobre a cheirosa relva, e dispondo sobre ela um lauto piquenique, com abundância de cenourinhas frescas e outros manjares do género. As actividades eram animadas por um pequeno grupo de coelhos cantores, que faziam deslizar alegremente a melodia:
é Primavera, o primeiro dia
felizes estamos, por isso cantamos
vivam as flores e as cenouras
vivam os insectos e demais animais
viva o sol, a luz e o calorzinho
viva a vida e viva a alegria
O coelhinho ensimesmado, já muito aborrecido, reparou numa rapariga gorducha e bem disposta, que, sentada no chão de terra, descansava as costas no tronco da árvore grande, observando, curiosa e divertida, toda a maravilha da cena envolvente.
Ele, o nosso coelhinho, sentindo uma súbita fome de pequeno almoço, aproximou-se, sorrateiramente, dela - que, já agora, se chamava Titá - e, com um ar maroto, preparava-se para lhe morder uma perna, mas ela, sentindo a ameaça daqueles dentinhos afiados, afastou-o com uma festinha e, com igual dose de meiguice e convicção, explicou-lhe que as suas pernas não eram comida de coelho, ao que ele, na atrapalhação do flagrante, se desculpou, eu só estava a brincar! Então, ela, fingindo acreditar, pegou-lhe numa das patinhas transpiradas, encaminhou-o para o grande grupo dos outros coelhos, apresentou-o e disse, meus caros, este vosso amigo andava perdido na floresta e, cá para mim, está esfomeado e a precisar de companhia. Sem a deixarem continuar, eles fizeram uma grande roda à volta dos dois e responderam, em coro, Oh! junta-te a nós e os nossos manjares partilha, não faltam cenouras nem alegria, para te alimentar e fazer companhia! Ainda a medo, ele juntou-se-lhes, aceitou a primeira de muitas cenouras, começou a relaxar e, passado pouco tempo, já cantava e dançava. A Titá retirou-se devagarinho, com um sorriso a florir-lhe os lábios, e foi ao encontro dos seus amigos, que, já um pouco inquietos, a esperavam para o primeiro piquenique da Primavera.  
 
Nota: Inventei esta história há uns anos, para a Inês, que nunca parava de me pedir histórias inventadas. Hoje já tem 10 anos, quase 11, e pede-me opinião sobre actores de cinema, cantores, etc. Foi muito gratificante inventar histórias para a Inês, mas não o é menos vê-la crescer e passar para um registo diferente, de pré-adolescente. 
Abaixo: 2 aspectos da ilustração que fiz para a história.
 
 
 
 

 
 

quarta-feira, 16 de abril de 2014

QUE SERÁ FEITO DE MISTER LONELY?

 
Como poderia o silêncio prender duma maneira tão surda e eficaz? Mas foi isso mesmo que aconteceu, aquele silêncio tomou-lhe  o sangue e, quando desaguou no coração, explodiu na mais profunda das ausências, comeu-lhe o tutano dos ossos, manietou-lhe os músculos e deixou-lhe a boca seca de ansiedade e angústia. Se deixou algum espaço? Pois deixou, o espaço para a percepção duns mínimos sons, por definição, só podiam ser mínimos, os sons ampliados na esplanada vazia do silêncio maior. Uma espécie de campainhas longínquas, de proveniência indecifrável, impossíveis de desligar, justamente por isso, por não se lhes conhecer a origem e, sobretudo, pela inegabilidade do silêncio. Assim, aquele assombroso  e espesso silêncio tornou-se símbolo da solidão maior, a que se impõe, impondo a percepção ininterrupta de vultos outros, difusos, sem os quais não seria, obviamente, solidão.
Ele não confessava aquele silêncio a ninguém, nem admitia que se lhe notasse. Não suportava algazarras sem sentido, sobretudo as exclusivamente destinadas a silenciar silêncios, ainda menos as, porventura, destinadas a silenciar o seu silêncio. Puro fingimento, umas e as outras, assim pensava. E aquele silêncio era dele, talvez a sua única verdadeira criação, infeliz criação, aqui para nós. Mas não, ele reivindicava aquele silêncio, não porque se sentisse bem no ninho da ansiedade e da angústia, amarrado naquela prisão, sangue envenenado, exaustão, mas porque sabia, de certeza absoluta, que só ele podia espatifar as grades daquele silêncio. Não estava ao alcance de ninguém retirá-lo do universo das campainhas longínquas, indecifráveis e ininterruptas. Talvez, só de alguém que, sem necessidade  de ele se revelar, lhe trouxesse uma bela música ou até palavra, suave, encantatória, que o fizesse vir à superfície do poço de águas negras, despertar os sentidos, de maneira a esquecer, naturalmente,  a latência das campainhas , recuperar o bater calmo do coração, desinundado do veneno do silêncio, daquele silêncio, poder, enfim, desfrutar do silêncio da quietude e não do ground zero da ausência.
Conheci-o, era engraçado, chamava-se a si próprio, Mister Lonely - embora não por palavras, mas pela camurça macia do olhar, e apenas perante quem conseguisse perceber a sua espécie de silêncio, porque, como ficou dito acima, tinha horror a expor-se.
Que será feito de Mister Lonely?   





 


segunda-feira, 14 de abril de 2014

DE ONDE VIESTE

Amanhã estava a ser exactamente igual ao que viria a ser ontem, mas não ouses perguntar-me porquê, tu sabes. Um ataque de jet lag enrolava-te na intemporalidade dos fusos secundários, definidos a cada micro unidade como se moedas trocadas, cascalho miúdo e saltitante, assim o disseste, calculo que te lembres. Fiquei espantada, pois tinha pensado em saltitante para definir uma das espécies de humor, assim, o sentido de humor é uma tristeza saltitante. Achaste graça, foste o primeiro – aliás, o único – a achar interessante esta definição duma variável do sentido de humor, e, então, aventurei-me a perguntar, de onde vieste? E tu, espantado, como se fosse uma pergunta impossível, melhor, proibida, respondeste, ???. Eu não sabia, nunca saberia responder a três pontos de interrogação seguidos, e entristeci, aqui acaba mais uma hipótese de conversa e fico sem saber de onde vieste. Já me preparava para me levantar, ir fazer o tour das lojas do free shop, tomar um café, observar o movimento em trânsito – sim, também existe movimento parado, como quando um grito se detém a meio da garganta, apenas um exemplo – rever a hora do meu voo atrasado, quando me detiveste, para perguntar, sorrindo, e tu, de onde vieste?
 
 
 
 

quinta-feira, 10 de abril de 2014

OXALÁ!


Movia-se tal um corpo descaído, o pescoço dobrado em semiarco, olhos arrastados pelo chão, lavando desperdícios alheios. Não era um cão, era um homem, pelo menos, tinha sido, quem diz homem diz mulher. Não precisa ter idade definida, não pode é ser criança, adolescente ou muito jovem, não seria justo. Não seria justo?, coisa mais idiota, mas alguma vez poderá reclamar-se de justiça o que não passa do puro domínio do agravo, da ofensa gratuita, do riso desalmado dum qualquer pesadelo sem nome nem matéria nem alma?
O espírito vagueou-lhe, foi o que foi. Partiu para o destino sem regresso dos vencidos, não necessariamente os que se deixam vencer, mas aqueles que a vida vence, apesar de tudo, sobretudo apesar deles próprios, é bem possível, que isso do livre arbítrio e da força do pensamento positivo ainda está a anos luz de cabal demonstração.
Será que tinha um cão para tomar conta dele e escrever os farrapos da sua biografia, como no Timbuktu, do Paul Auster? Será que, em criança, tinha conseguido planar, como Mr. Vertigo, do mesmo Paul Auster?
Não sei, só sei que lhe chamavam sem-abrigo, ignoro se era nome ou condição. Ou, mesmo, se era, tecnicamente, sem-abrigo ou um qualquer sem-abrigo de luxo. Ou, até, se foi apenas um dia ruim e se, no dia seguinte ou umas semanas depois, se movia qual passo destemido, com os olhos erguidos para lá do pensamento. Oxalá!
 
 
 
 
 

quarta-feira, 9 de abril de 2014

OS BRILHOS DO DIA


Por hoje, já estou abastecida de ideias brilhantes, não minhas, infelizmente, que eu nem sequer tenho ideias, quanto mais brilhantes!
 
Primeira, do governador do Banco de Portugal: passar de 8 para 10 (dez, sim!) anos, o prazo de prescrição dos processos contra-ordenacionais no âmbito do sistema financeiro.
Cá por mim, apenas aditaria uma coisita: mudar a designação de prescrição para esquecimento.
 
Segunda, do governo de Portugal: permitir que as IPSS realizem funerais.
Não entendo como ainda ninguém se tinha lembrado duma medida tão acertada!
Todavia, parece-me que deveria, a) ser dada preferência aos lares da 3ª idade; b) estender a medida às instituições do Serviço Nacional de Saúde, mediante a criação dum novo serviço - de preferência grátis e, se pago, nunca de preço superior a 50% do preço das colonoscopias com sedação - designado, v.g., entrada por saída; c) associar a medida a uma outra, a eutanásia por decreto.
 
Fico, então, a aguardar mais ideias brilhantes, caso em que prometo transformar o título deste post em rubrica assídua. 
 
PS: Lembrei-me, entretanto, que os Tribunais poderiam ser encarregados da cremação dos processos esquecidos, e que as agências funerárias poderiam acumular, por exemplo, com a prestação de serviços estéticos e a organização de banquetes. Está bem, talvez não...
 
 
 
 
  
 
 


segunda-feira, 7 de abril de 2014

ALMALFAZEMA

 
Mas a paisagem era tão bela e longínqua como as alturas para onde a tua alma se evadia, a tua alma desprendida, sem horizontes por limite, sem destinos marcados por fronteira. Tudo era dum azul difuso, esfumado em nuvens leves e transparentes, podendo uma cor ser transparente, como nessas distâncias podia. Aliás, tudo era possível, para essa tua alma vadia, vagabunda, subtil, etérea, desvinculada, livre. Uma alma que não prestava contas, não necessitava prestar contas, qual mar em seus alvoroços ou calmarias, qual vento em seus segredos ou gritos, que ninguém domina nem é da natureza das coisas dominar. Essa tua alma era tão alta, tão luz, tão leve, e, todavia, tu.
 
Tu eras outra coisa, aliás, na interposição do espírito, da emoção e da mente, realidades outras, descolavas da lonjura da tua alma, planavas baixo, um rumo certo, é bem verdade, mas não isento de colisões, sobretudo contigo, poor thing, amarguravas-te e espalhavas amargura à volta.

No entanto, não se podem negar as alturas e a pureza da tua alma de alfazema.

Lembrei-me disto, desta parte de ti, tão comovente, ao ouvir uma canção, mas não me lembro qual, só que, enquanto a ouvia, não parava de pensar em ti. É quanto basta, para um encontro de almas - pensei.







 

PERGUNTAS-ME?

 
Se me lembro? Como poderia não lembrar?
Era de Primavera, vestias o teu pulôver azul escuro sobre a camisa de quadrados miúdos, azuis e brancos, e tiveste de o tirar, pois o calor invadiu. As calças eram as de sempre, jeans coçados, e uns sapatos que não me lembro, sobre umas meias que também não.
Abri a porta, porque antecipei os teus passos, conhecia os teus passos de cor, esperava o som dos teus passos como se a música mais dançável - e eu adorava dançar! Quase te assustaste, embora não fosses dado a sustos, no repente de mim à tua frente, quando te preparavas para tocar à campainha, coisa desnecessária, porque a minha espera ansiosa, alegre e atenta a tornou desnecessária.
E eu, como é que eu estava, no meu exterior, lembras-te?
Também me lembro de mim, do meu exterior, o cabelo escorrido da água do duche e não sei mais. É pouco, para uma descrição, melhor, uma lembrança, mas é preciso não esquecer que estávamos na Primavera, um sol descarado, afastando as últimas chuvas sem cerimónia, flores amarelas a rebentar por tudo quanto era palmo de terra, corações aos saltos, pura sintonia com a exacerbação da natureza desadormecida e galopante.
Dizes-me que não foi por causa do calor que tiraste o pulôver? Dizes-me que todo o meu corpo escorria da água do duche?
Talvez tenhas razão, afinal era de Primavera e a natureza explodia assim, feita arco prometido e caminho conquistado, e o mundo era nosso, inteiramente nosso, e havíamos de o queimar, com gosto e sede, até aos píncaros do Verão.
Ainda nem sonhávamos das cinzas do Outono, quanto mais dos mantos frios do Inverno.
Todavia, hoje é de Primavera, outra, e perguntas-me...
Perguntas-me?
 
 
 
 
 

sábado, 5 de abril de 2014

A VER COM CÃES






 




ENCONTRO MAIS QUE PERFEITO

 (UMA CENA POST QUALQUER COISA, TALVEZ POST SURREALISTA OU POST PARVA)
 
Foi, então, que ele se virou para ela e, da nuvem calma do seu metro e oitenta, perguntou:
-Conhece alguém que arranje cabeças?
-Cabeças, não, só bicicletas - respondeu ela, distraidamente, do alvoroço do seu metro e sessenta e cinco.
-Nesse caso, talvez seja boa ideia irmos tomar um café e você dá-me o contacto do arranjador de biclas.
-Mas não era de cabeças?
-Vai dar ao mesmo.
-Ah! nesse caso, sim, vamos tomar café e trocamos os contactos.
-Trocamos?
-Pois, eu dou-lhe o do arranjador de biclas e você dá-me o do arranjador de cabeças.
-Mas, lembro-me agora, eu nem sequer tenho...
-...uma bicla! Então por que perguntou? Não sabe que quem não sabe não pergunta?
-!!! Olhe, aqui está o Café, gosta de café, não?
-Se gosto, adoro! Sobretudo com biscoitos de chocolate, mergulho-os na chávena até quase se desfazerem, tiro-os mesmo a tempo de levar à boca e acabo a beber aquele puro néctar, que transcende a dupla delícia do café e do chocolate. Nham! Nham!
-Que giro! sabe que partilho inteiramente esse desvario pela mistura ideal café/chocolate?
-Pois, isso é mais um sinal de que não nos encontrámos por acaso.
-Mais um?
-Claro, o outro foi termo-nos encontrado, não é óbvio?
-Pois é, agora que o diz. Sabe, sou um pouco distraído. Já agora, o que estava a fazer ali, na paragem do autocarro?
-Ainda bem que pergunta, estava cheia de pressa para apanhar um táxi, mas agora já passou a hora. E você, o que fazia lá?
-Eu? Bem, estava à sua espera.
-Como assim? eu nem costumo passar por ali...
-Justamente, se costumasse passar por ali, eu estaria ao seu encontro, não à sua espera, está a ver a diferença?
-Assim uma diferença tipo, entre um arranjador de cabeças e um arranjador de biclas?
-Touché!
-Quer, então, dizer que nem sequer precisa dum arranjador de cabeças?
-Pois, nem sei o que isso é.
-Bem, eu sei, sou psiquiatra
-Já tinha adivinhado!
-Já?
-Pois claro, não se vê mesmo que sou uma bicla?
-Você é, realmente, um prodígio de inteligência, pena que, agora, acabou a hora do recreio e tenho de o levar de volta à garagem, mas fica prometido outro café com biscoitos de chocolate.
-Tem mesmo de ser?
-O quê, o café com biscoitos de chocolate?
-Engraçadinha, até parece um triciclo fofinho. Pronto, bora lá!
 
Entenderam-se tão bem, que repetiram os cafezinhos e biscoitos de chocolate até ao dia do casamento, depois foram felizes para sempre e, pelo caminho, tiveram muitos meninos afectados pela síndrome da confusão de identidade, quer dizer, tinham a mania que eram coisas estranhas, um skate, uns patins em linha, uma scooter, etc.