quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

RELÓGIO DE DALI


Era fim de tarde, vento de tombar, chegaste a casa, escorregaste pelo sofá como um relógio de Dali, não abriste a boca, nem boa tarde, apesar de me perguntares. Perguntaste-me com os olhos e eu sem saber o quê, o que querias saber de mim, talvez fosse só através de mim o que querias saber, talvez já soubesses a resposta.
 
O teu corpo amolecido, quase derretendo, contaminando o sofá. Perguntei-me, será cansaço, inércia, negação. Depois ocorreu-me, hesitação. Não encontrei resposta, desisti de perguntar, de qualquer das formas, a resposta nunca poderia sair de dentro de mim, só posso responder pelas minhas respostas.
 
Já me afastava e tu, espera, precisamos de falar. Não por palavras, apenas pela agitação dos olhos. Parecem de veludo, os teus olhos, mas mesmo de veludo é a tua voz. Gosto de ouvir a tua voz, embora tenha medo da tua voz, da atracção da tua voz, da recusa da tua voz.
 
Hesitei, imperceptível esvoaçar de meia lua, permaneceste, não era hora de palavras, talvez, arrepiaste a pergunta ou seriam perguntas(?), muitas duma vez só, totais, dogmáticas, afirmações, afinal seriam afirmações, talvez só pretendesses confirmar ou que eu confirmasse. Mas o quê? Os meus olhos perguntavam, agora eram os meus olhos, e desviaste os teus. Fixaste a ponta dos sapatos, como poderia ter sido a janela, o écran vazio da TV, uma cadeira.
 
Fixei-me no longe, dei meia volta, nada perguntar, nada declarar, assim me queres, assim me tens. Não é o meu caso, mas estou cansada de esperas. Sabes, não se trata duma desistência, não é desinteresse, apenas inquietação, não me convém esta inquietação, preciso de me sentir resolvida, simples cansaço. Extremo cansaço. Se me sentasse agora a teu lado iria parecer um relógio de Dali, embora não pelas mesmas razões por que pareces um relógio de Dali, assim esparramado, estas desconheço, não tenho obrigação de adivinhar.
 
Está bem, é agora, dou meia volta, vou-me embora, já devia ter ido. Onde vais? - abres os olhos para perguntar, enquanto desembaraças o nó da gravata, fica-te bem, essa gravata.   
 
Estou do lado de lá da porta de casa, desço as escadas, desço comigo até ao fundo de mim, estou partida, não chegaste a perguntar. Não é hora, não será hora, essa hora estagnou, presa no mecanismo derretido dum relógio de DALI.
 
 
 

Sem comentários:

Enviar um comentário