domingo, 23 de fevereiro de 2014

POR UM CHOCOLATE!


Era fanática por chocolates, o seu cérebro esperava, ansiosamente, aquele momento em que, iniciada a degustação,  bracinhos castanhos e mornos o percorriam, cálidos afagos de serotonina e multiplicados  brilhos de sinapses redentoras. Obviamente, as ancas (e não só) protestavam, até porque os bracinhos, cumpridos os afagos, desciam para descansar, instalavam-se e já não queriam sair de lá, das ancas (e não só), entenda-se.
Mas a vida mudou-lhe, até as ancas se esvaíram, na penúria a que, por razões aqui alheias, se viu diminuída, ao ponto de ter ido viver para debaixo dum viaduto, também podia ser uma ponte, mas isso seria demasiado vulgar, muito lugar comum.
Por vezes sonhava com o sabor do chocolate perdido, aquela textura a derreter-se-lhe na boca, o cérebro entusiasmado e agradecido, e, como era um sonho bom, as ancas (e não só) ficavam do lado de fora. Se calhasse pesadelo, que os tinha, e muitos, lá apareciam elas (e não só) a fazer descer abruptamente os níveis de serotonina e o fulgor das sinapses.
Naquele dia ou noite - aquilo de viver sob o viaduto já não lhe permitia distinguir - sonhou o sonho bom, mas, quando a luz invadiu, forte, atravessando as cortinas de betão, podendo ser do sol ou dos faróis dum carro a acelerar, acordou, os olhos ainda levitavam na doçura, mas a boca soube-lhe a falta de chocolate e as mãos crispavam-se sobre o estômago, como quem tenta separar as paredes unidas pela fome.
De regresso às órbitas vazias, os olhos avivaram-se numa decisão, a que o cérebro esteve longe de ser alheio, é hoje, é hoje que temos de comer um chocolate, um grande chocolate, um chocolate até à distância do impossível!
Com gesto rápido, afastou o edredom de pedra miúda,  ergueu-se determinada, lavou-se num charco das últimas chuvas e pôs-se a caminho, sobre os sapatos meio corroídos, obra de ratazanas vizinhas, talvez para elas solas velhas tivessem o sabor do chocolate ou talvez não. O vestido descosia-se num dos lados da cintura e o cabelo erguia-se em reboliço, ignorante da data da última lavagem. Caminhou com a desenvoltura de quem vai sempre em frente, porque sabe bem onde se dirigir. Ao fim de três horas, chegou. Recordava-se bem daquela loja, só chocolates, prateleiras e prateleiras cobertas de deliciosos chocolates, meninas aperaltadas atrás dos três balcões, derretendo-se em sorrisos para os clientes. Até que a viram, fecharam os dentes e deixaram cair olhos estupefactos sobre a sua magra e improvável figura. Não se importou, também não com os olhos e as bocas assarapantadas dos clientes, iguais aos das meninas atrás dos balcões. Percorreu as prateleiras com a antecipação da delícia e foi apanhando um aqui, outro ali, como quem se dá ao luxo de poder escolher, deixando a suspensão reinar em seu redor, sem sequer se aperceber de que uma das vendedoras tinha accionado um botão secreto. Encheu o saco meio esboroado e, qual troféu, ergueu na mão o maior dos chocolates, dirigindo-se à porta, tão calma e determinada quanto entrara.
Então, tudo sucedeu num repente, justamente no limiar da saída, cruzou-se na pressa desaustinada dum polícia armado, e tudo ficou claro, era o chocolate contra a arma, hesitação impossível, depois restava-lhe correr, o chocolate voou de encontro à testa do polícia, um desequilíbrio foi causado, para trás, de encontro à ombreira da porta, o homem escorregou, bateu com o cotovelo armado em qualquer coisa e a arma disparou, furando-lhe o queixo, que se expandiu num fogo de artifício de lascas de  dentes, chispas vermelhas e bolinhas de mioleira, numa cena que o próprio Quentin Tarantino  não teria ousado desprezar. Ah! só um parêntesis para dizer que não sei se é tecnicamente possível, o disparo naquelas circunstâncias, quer dizer, com aquele percurso.
Ora, uma coisa é roubar chocolates outra, bem diferente, é  provocar, mesmo acidentalmente, o desnascimento dum semelhante, sabe-se lá se também amante de chocolates, doçura cúmplice. Em vez de fugir, apiedou-se, ela, a Ana Rosa, isso, vamos dar-lhe um nome bem foleiro, a condizer com o não abrigo do viaduto, antes disso, chamava-se Francisca, apenas. Ajoelhou-se, desprendeu-lhe a arma dos dedos já flácidos, não fosse disparar outra vez e ampliar a mortandade, e amparou-lhe a papa da cabeça, como se assim lhe pudesse restituir o nascimento, enquanto uma lágrima caía sobre o estardalhaço à volta, após deslizar, triste e compassiva, pelo seu rosto frágil, como a do menino da pintura de qualquer casa de velharias que se preze.
Mais dois polícias encorparam na proximidade das suas costas derreadas e, com a indubitabilidade dos dedos de todos os outros, vendedoras e clientes, estendidos na sua direcção, foi ela, levantaram-na rudemente e deram-lhe voz de prisão. 
De nada lhe valeu protestar inocência, as suas impressões digitais ficaram impregnadas na arma acidental, apesar do ranho variado que se lhe tinha colado, proveniente daquela cabeça esventrada - aproveita, Tarantino, se te apraz! E, é claro, os dedos acusadores nunca se rebaixaram à verdade ou sequer à dúvida, pelo menos até ao termo do julgamento, rápido, por sinal, e definitivo, na sua douta conclusão: culpada, homicídio voluntário no mais elevado grau, agravado por isto e por aquilo, já para não falar no roubo dos chocolates e, pior, na desfaçatez com que foi perpetrado. Sentença: pena de morte! Ah!, isto passou-se nos Estados Unidos da América, tinha-me esquecido de dizer.
Recolhida à cela, após o conhecimento da sentença, estava muito zangada com a vida e, em manifesta reacção contra a injustiça, que sempre lhe custara aguentar, resolveu fingir que as coisas tinham sucedido como descrito e concluído nos autos, riscou na parede vazia, até mato por um chocolate!
Os dias dilataram-se com a serotonina em baixa e as sinapses retardadas, até que chegou o dia, o da execução, carcereiros entraram-lhe pela cela e, com saracoteios de simpatia tardia, anunciaram-lhe a iminência da última refeição - ia dizer ceia, mas não caía lá muito bem, já está tomada - disponibilizando-lhe um naipe de escolhas a que nunca tivera acesso, nem na sua longínqua vida de simplesmente Francisca. Mas ela sempre achara estúpida aquela ideia, facilitar um banquete a um morto antecipado, como se barriga aconchegada fosse capaz de exorcizar o medo daquela proximidade desconhecida e definitiva, se calhar a ideia é apenas juntarem um castigo colateral, pensou. Fechou-se num mutismo de costas voltadas e não se dignou responder, não ia ceder à estupidez, nem por um chocolate. E eles, vá lá, Ana Rosa, diz o que queres, podes escolher o que quiseres, talvez uma degustação de chocolates, e riram à socapa, para as costas dela, já tinham cumprido a sua parte de saracoteios. 
Impotentes no cumprimento da sua missão e receosos da correspondente descida na classificação de serviço ou negação duma muito eventual promoção, retiraram-se e foram falar com o padre, o encarregado das absolvições finais.
Então, filha, faz um esforço, reconcilia-te com o mundo antes da partida, não sejas orgulhosa, e ela a pensar, grande parvalhão, só me faltava cá este, enquanto concentrava o pensamento na idealização dum lado-de-lá povoado de rechonchudos anjinhos de chocolate, transportando-a por mornas nuvens de açúcar glacé - não sei se é isto, não percebo nada de culinária -, deixando-se comer sem reservas.
Foi aí que o padre tirou qualquer coisa de sob a batina - será que ainda se usa? - e, estendendo-lha numa iluminação radiosa, lhe disse, filha, aqui tens um tablet de chocolate, come! E era mesmo, um tablet, não uma tablette, de chocolate. Bem, era quadrado e tinha os vários símbolos dos verdadeiros tablets, Google, gmail, facebook e por aí fora. O orgulho era muito, mas a tentação foi maior, Ana Rosa agarrou-se à oferta e começou a clicar que nem uma louca e, a cada novo clique, saía um quadradinho de chocolate, que se apressava a devorar.
Quando do tablet já só restava nada, escorregou as omoplatas na parede, enquanto os olhos deambulavam num sorriso longínquo, como só um reforço de serotonina e uma aceleração de sinapses pode provocar. Gentilmente, o padre cerrou-lhe as pálpebras e aconchegou-lhe os braços no regaço, já não estavam hirtos como naquela manhã, nunca viria a saber que o último quadradinho do tablet tinha sido recheado de cianeto e que o padre estava muito contente por ter cumprido a boa acção do dia.
Alergia a chocolate, só pode, foi a sua resposta à estupefacta interrogação dos carcereiros, regressados para cumprirem o resto das formalidades. Aceitaram a explicação, afinal um padre não tem necessidade de inventar nem está autorizado a mentir! Lembraram-se, então, do colega assassinado - por um chocolate, mas isso ignoravam - e um deles, por entre uma risada histérica, escreveu ao lado da frase de Ana Rosa, morta por um chocolate!  
 
Nota: Dar o devido desconto, s.f.f.. Isto foi escrito sob o efeito de privação de chocolate e dum pico de febre!
 
(Pormenor duma mesa deliciosa, uma vez, no Centro Cultural de Cascais, pena eu não estar incluída na lista de convidados)
 
 
 
 
 
 
      

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