domingo, 15 de dezembro de 2013

O MENINO, OS DUENDES, O PAI NATAL E ETC. E TAL.


Agora que estamos quase no Natal de 2014, sim, o de 2014, pois o de 2013 está quase a expirar, dou comigo a pensar nisso, no Natal. Nem percebo muito bem porquê, este ano não me tenho sentido nada natalícia, posso até confessar que não fiz presépio nem árvore, nem sequer convoquei os diversos bonecos encantados (com e sem música) que povoam o baú dos Dezembros.  
Vai daí, noite adentro, céu pejado de estrelas rutilantes, passando eu por um caravançarai, ouvi uma vaca mugir e um burro zurrar, o inverso não seria normal, quando, não sem espanto, vi um minúsculo recém-nascido, lourinho e de olhos azuis, agitar-se num pranto desmedido, dominado pelo pânico de ser devorado pelo dito par de animais, ao menos foi o que pensei. 
A mãe estava ao lado, atenta e com olhar doce, nada do que pudesse dizer para o acalmar surtia efeito, mas ela também não disse nada, embasbacada na contemplação do barulhento menino. Do pai, nem falar, fixado, que estava, na espera das visitas, quem sabe se procurando alhear-se dalguma aflitiva incompreensão, talvez fosse isto. 
Juntaram-se umas ovelhas mansas e fofinhas, embrulhadas em algodão em rama, e o menino fixou-as com os pequenos grandes olhos muito abertos, de lágrimas suspensos, os seus mínimos braços pararam de esbracejar, as suas mínimas pernas acomodaram-se no colchão de palha e, não fora um arrepio causado pela gélida noite do deserto, carregada de neve, tudo estaria na perfeição, esquecida a receada fome da vaca e do burro, concentrada a atenção nos prometidos peluches. 
Caso fosse de dia, poderia ver-se a imensidão de areia seca, cor de barro amarelento, cercando o recinto, a rama duma ou outra palmeira adejando na breve aragem morna e um ou outro camelo ondeando, em trânsito. Mas as coisas são como são, era de noite, não vale a pena inventar, a verdade vem sempre ao de cima, diz-se. 
Como era noite estrelada, a magia foi permitida e, então, onde eram pedras nuas deitou-se a corrente  dum rio, que logo se povoou de peixes, onde o tecido se rasgava de secura, irrompeu um acetinado tapete de musgo, daí as ovelhas. O rio e os peixes chamaram dois ou três pescadores e várias lavadeiras, juntou-se-lhes um padeiro, um talhante, uma vendedora de frutas e outra de legumes, o que até se compreende, pois no caravançarai eram servidas refeições. Aliás, foram-se juntando representantes de quase todas as profissões conhecidas, excepto políticos e banqueiros, porque o sítio era demasiado humilde. Ah!, acorreram também muitos animais, para além dos citados, incluindo, galinhas, coelhos, patos e um único peru, mas este viria a arrepender-se amargamente de não ter ficado em casa ou lá onde morava, quer dizer, ter-se-ia arrependido, caso tivesse tido tempo para isso.
Com tamanho ajuntamento de pessoas e animais num remoto local do planeta, habitualmente tão calmo, as estrelas ficaram curiosas, debruçando-se perigosamente do seu majestoso púlpito, tão perigosamente que uma delas, mais afoita ou mais curiosa, se debruçou demasiado e caiu, zzzzzzzzzzzz, aí vou eu, deixando atrás de mim um rasto de brilho.
Três caminhantes do deserto, montados em resignados camelos, vendo a estrela em movimento alucinante, resolveram seguir-lhe o rasto, interessadíssimos em testemunhar o destino da sua audácia. E assim chegaram ao caravançarai, junto ao qual o movimento aumentara substancialmente, agora animado por um grupo de músicos de farda azul e bonés debruados a dourado.
O burburinho era tanto e, sobretudo, tão desacostumado para a região, que os três caminhantes rapidamente se esqueceram da estrela, misturando-se com a multidão - a estrela, satisfeita a curiosidade, tinha conseguido inverter a marcha, retomar altitude a golpe de asa e reinstalar-se no espaço sideral, mas isso eles nunca viriam a saber. Como ostentassem belíssimos e coloridos mantos de seda, bordados a ouro e prata, os outros afastaram-se respeitosa e timoratamente para os deixarem passar, eram outros tempos, pelo que rapidamente estavam frente a frente com o menino lourinho de olhos azuis, sua mãe e seu pai.
O menino, atraído pelo brilho das vestes, distraiu-se das mansas ovelhas e agitou as mãozinhas sapudas na direcção dos três homens, que, não sabendo bem o que haviam de fazer, acharam de bom tom dar os parabéns aos pais. Apresentaram-se, cumprimentaram e partiram um bocado à toa, sem perceberem muito bem o que faziam ali, e à pressa, visto terem desviado significativamente a rota da sua missão. O menino, vendo-os afastar-se, desatou em novo pranto desmedido, não que eles tivessem ouvido, já desapareciam, ao longe, por entre as palmeiras.
Como se do nada, surgiram, então, uns duendes marotos, muito bem vestidos nas suas fardas verdes, rematadas em pontiagudos barretes vermelhos, arrastando atrás de si um magnífico abeto, que, em menos de nada, elevaram diante da criança e decoraram com bolas, sinos, bonecos, caixinhas e muitos outros objectos brilhantes e coloridos. No fim, somaram velas de alto a baixo e acenderam-nas com sopros mágicos, não fossem eles duendes, visto o dono do caravançarai se ter recusado a emprestar-lhes fósforos. Obviamente, o menino ficou encantado com tudo isto, os soluços perderam-se na crescente dilatação dos espaços e as lágrimas transformaram-se em brilhos curiosos. A mãe suspirou, aliviada, e o pai voltou a abstrair-se no longe dos seus pensamentos, sabe-se lá quais.
A vaca e o burro entreolharam-se e, com uma terrível dúvida existencial espelhada na ruminante face, mugiu a vaca, em tom interrogativo, mas, afinal, o que fazemos aqui?, ao que o burro, apanhado de surpresa, se limitou a zurrar, o que é que achas?, assim torneando a sua ignorância e desmentindo a fama que o seu nome impunha. A vaca encolheu os ombros e suspirou para cima do menino, envolvendo-o num bafo quente. Ele estremeceu, assustado, e desatou aos gritos. Desta vez, a mãe procurou confortá-lo com uma chucha, mas, não sendo luxo de que dispusesse, socorreu-se de macia tâmara. Porém, o menino continuava a gritar, não tinha apreciado o sabor do fruto, que rejeitou, exasperado.
Então, impôs-se um alegre ruído de guizos, vindo lá do alto, antecedendo a aparição duns pares de renas, que puxavam uma carroça repleta de embrulhos cintilantes. Rapidamente alcançaram o telhado do caravançarai, onde estacionaram, deixando sair o pai natal, que se apressou a deslizar pela chaminé, apresentando-se, de seguida, junto do menino, empunhando um belo embrulho e sorrindo com bonomia. O menino, deslumbrado, puxou a fita dourada que prendia o papel do embrulho e perguntou ao pai natal, quem és tu e o que é isto? Todos os que ouviram, a começar pelos pais, espantaram-se perante o prodígio do recém-nascido falante. À excepção do pai natal, que, com grande naturalidade, respondeu, sou o pai natal e isto é o teu presente, um iPad. E já se preparava para explicar o que era um iPad e como funcionava, quando o menino, sentando-se muito direito, lho arrancou das mãos, respondendo, eu sei o que isso é e como funciona, lá por ser pequenino não quer dizer que seja info-excluído. Ok, respondeu o pai natal, e afastou-se, tão divertido quanto apressado.
O menino, absorvido no brinquedo novo, aliás, primeiro e único, desatou a consultar vários sites à velocidade da luz, desligou  o iPad e correu atrás do pai natal, espera aí, espera aí!, deixando a assistência, pais incluídos, boquiaberta. O pai natal virou-se, esperou e perguntou:
- O que queres agora, lindo menino?
- Leva-me contigo, por favor.
- Para onde?
- Ora, para a tua terra, a Lapónia.
- Porquê?
- Não te faças de parvo, pai natal, tu sabes, não foi para isso que me deste o iPad?
- Ah!, estou a ver, foste pesquisar em Natal, Presépio...
- Romanos, Pôncio Pilatos, Judas, 1º e 2º milénios e por aí adiante.
- E?
- E, antes que seja tarde, quer dizer, antes que eu complete 33 anos, tira-me daqui, please!
- Agora não posso, estou com pressa, ainda me falta ir visitar um outro menino, que acabou de nascer não longe daqui.
- Ele está à tua espera?
- Não, pode até dizer-se que eu e muitos outros é que estamos à espera dele. Chama-se Jesus, Menino Jesus.
O pai natal já sobrevoava o caravançarai, quando o menino, aliviado, regressou ao berço, enquanto a mãe se dirigia ao pai, desabafando, ai António, este miúdo ainda nos vai dar uma grande trabalheira, ao que ele encolheu os ombros, obcecado que estava sabe-se lá com quê. Como ela o olhasse à espera de resposta, disse, tens razão, Francisca. O menino fingiu que não ouviu, voltou a ligar o iPad e foi explorar os jogos disponíveis.
Não longe dali, os três caminhantes do deserto entregavam os seus maravilhosos presentes ao Menino. 

























 
 
 
 
 
  
 (As fotos são, escusado será dizê-lo, de Natais anteriores.)
 
 
 
 
 

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