sábado, 21 de setembro de 2013

O MOLESKINE DE JANETE (XI)


(Continuação)
 
Filipa tinha passado uma semana altamente laboriosa, acompanhando a apresentação das colecções para a estação Primavera/Verão do ano seguinte e tentando seleccionar referências susceptíveis de agradar aos seus diversos e exigentes clientes.
Todavia, no meio de toda aquela agitação, agravada por intensa actividade social, a que não podia subtrair-se, tal era o interesse profissional em cultivar contactos, nunca deixara de existir um recanto da sua cabeça reservado a um pensamento estranho a todo aquele mundo, um pensamento que tinha nome próprio, a saber, Francisco.
Não foi, pois, por falta de vontade ou esquecimento que não estendeu a sua voz até ele. Afinal, tendo sido ela própria, numa imposição unilateral e, talvez, demasiado radical – pensava agora -, a agendar o futuro contacto para o dia do regresso, receava tomar uma iniciativa precoce, não fosse dar-se o caso de Francisco a rejeitar. Por outro lado - lembrava-se bem - ele praticamente a proibira de lhe enviar um SMS e ela não gostaria de se misturar em hipotéticas vidas que lhe não pertenciam.
As razões de Francisco não eram muito diferentes, queria respeitar o período de carência estabelecido por ela, que, tendo-lhe parecido muito radical, poderia indiciar um desinteresse com o qual ele não estava interessado em lidar, sobretudo após ter sido abandonado por Rita. Mas, também ele manteve o seu pensamento centrado em Filipa, embora não só nela. A ideia de Rita, ressuscitada pelo Moleskine, também não dava mostras de o abandonar, por mais que isso contrariasse o seu orgulho ferido.
Em todo o caso, decorrida aquela semana de estagnação e desperdício, foi com alívio e entusiasmo que Francisco ouviu a voz de Filipa, anunciando, com uma vivacidade não destituída de algum nervoso miudinho, que tinha acabado de chegar e convidando-o para jantar em sua casa. Obviamente, aceitou.
E levou flores, não por ser romântico – haveria, sequer, homens românticos? -, mas por educação, vontade de agradar e, também, porque, algures na sua memória, ficara presa a flor que Filipa abandonara no tabuleiro do seu primeiro pequeno-almoço juntos; aliás, o facto de não ser romântico não fazia dele menos observador ou menos dotado de certa sensibilidade, e aquele gesto, como que por acaso, falava bem da sensibilidade dela, se não romantismo – ainda haveria mulheres românticas? Para além do mais, de momento, estava interessado em firmar a sua conquista. Quanto a Rita, logo se veria, aliás, o melhor era esquecer, pois ela tinha sabido muito bem como sair de cena.
Filipa pareceu-lhe ainda mais bonita, com aquele rosto classicamente sóbrio e as bem estabelecidas proporções do corpo, que dispensavam a magreza, pois, não sendo esta a sua marca, também não se podia dizer que fosse gorda. Digamos que era bem constituída e proporcionada – e não radicaria a beleza física na harmonia das proporções em lugar do exagero de certos extremos? Francisco não formulou esta pergunta, de momento interessava-lhe acreditar na implícita resposta afirmativa e isso bastava, para quê complicar? Além disso, o cabelo comprido de Filipa, dum castanho dourado, condizente com a cor dos olhos, concedia-lhe um aspecto bastante atraente, sublinhado por uma serenidade que a excitação do momento apenas agitava, até que se entregou nos braços dele, beijando-o por forma a marcar a recordação que uma semana não conseguira apagar, antes exacerbara.
Francisco sentiu-se plenamente retribuído no desejo que sentia por ela e fizeram a adequada escala, antes do jantar.
A mesa confundia-se com o tabuleiro do primeiro pequeno-almoço, tal o requinte da louça e afins, incluídas as esguias velas elevadas numa chama sensual, trémula, qual alma em plena ascensão. As flores de Francisco repousavam, agora, em lisa jarra de cristal, com o abandono que só certas mãos conseguem imprimir. Eram rosas, cor de chá –não quisera arriscar as vermelhas, cor da violência e da paixão-, esculpidas em mínimos e viçosos botões, que emprestavam ao ambiente a frescura e o aroma dum jardim.
Era, também, esse, o ambiente que eles acabavam de recriar, ali ao lado.
Quando, finalmente, distendidos e em harmonia, se instalaram no amplo e estilizado sofá branco, de pele, cada um segurando o seu copo de vinho tinto, e aguardando o sushi encomendado – não porque Filipa se tivesse esquivado a cozinhar, até gostava, mas dada a falta de tempo para o fazer – , os seus estados de espírito e os seus corpos saudosos já estavam devidamente actualizados e sincronizados.
Então, a conversa evoluiu, naturalmente, para temas impessoais, como o da situação do País, que não deixava de parecer uma incógnita.
- Não podes imaginar como, este ano, as apresentações das colecções foram tão menos concorridas do que no ano passado, aliás, de há uns três ou quatro anos para cá tem sido essa a tendência, sempre a agravar.
- Faço uma ideia, pois é o que vou verificando todos os dias. Repara, dentre os meus amigos mais íntimos, apenas me restam dois, o João e o Diogo, que, por acaso, conheceste lá na discoteca. O pior é que ninguém percebe muito bem o que está a suceder. Quando nos apercebemos, deixamos de os ver, sem ficarmos a saber, exactamente, para onde partiram e porquê, visto não se dignarem dar notícias e serem peritos em despedidas apressadas, isto, quando se dão ao trabalho de se despedir.
- Todavia, se nos esforçarmos um pouco, quer dizer, se pensarmos um pouco, talvez encontremos uma resposta, não achas?
Francisco torceu-se na cadeira, pouco à vontade, perante aquela hipotética insinuação de que pudesse não pensar nas coisas. Não querendo responder, assumiu um ar vago, deixou aflorar uma ausência ao azul do seu olhar, e disse:
- Não achas que o sushi está a demorar, Filipa?
- Tens razão, vou já ligar para saber se estão muito atrasados.
Aquele desvio não impediu Filipa de retomar o tema, com a espontaneidade que a sua boa-fé e necessidade de compreender e debater as coisas, lhe recomendava:
- Parece-me que este País está esgotado, no sentido de já nada poder proporcionar ao seu povo. Se virmos bem, as riquezas naturais sustentam as finanças públicas, quase dispensando os impostos, apenas mantidos, por questão de disciplina e preservação do princípio, dispomos dum óptimo e inclusivo sistema de educação, ninguém nos coloca entraves, quando, devidamente habilitados, queremos desenvolver uma carreira, seja ela qual for, os governantes são honestos e bem preparados e não há dramas de saúde ou de velhice, pois o sistema de saúde e os apoios às famílias e aos mais velhos funcionam na perfeição.
- As coisas não são assim tão simples, Filipa.
- Simples?
- Deixa-me continuar, por favor; olha o meu caso, a minha carreira depende de ter ou não clientes e, antes disso, depende de mim, da minha perspicácia e imaginação. Basta esta ou aqueles faltarem e lá me vejo eu empurrado para as franjas da protecção social. Quem aguenta aceitar a sua própria inutilidade, podes dizer-me, Filipa?
- Eu entendo, mas creio tratar-se de questões distintas, Francisco. Não te esqueças de que estamos a analisar a debandada dos nossos concidadãos e o meu ponto é que não encontro uma justificação de natureza socioeconómica, para as pessoas se verem obrigadas a emigrar. Parece tratar-se dum novo patamar de emigração, já não determinada por exigências de sobrevivência ou da conquista duma vida melhor.
- Quer isso dizer que, na minha hipotética situação, não haveria razão para emigrar?
- Sinceramente, não sei, Francisco. Em que é que a emigração poderia resolver o teu eventual problema de falta de criatividade, se fosse esse o caso? E, se o caso fosse a falta de clientes, não vejo assim outros países que estejam tão bem como o nosso, de forma a proporcionarem-te os clientes que aqui poderias perder…
- Pela simples razão de que os clientes também emigram, não estás a ver? – Interrompeu Francisco.
- É verdade, mas, ainda assim, o teu caso individual nunca poderia funcionar como paradigma dum fenómeno tão geral, quanto incompreensível, não achas?
Por força da oposição de atitudes – ao menos assim entendida por uma das partes -, que não dos argumentos despendidos, a conversa estava a tornar-se quase tão absurda quanto a situação sobre que incidia e, assim, a chegada do sushi só pôde ter sido saudada, também pela fome que já grassava por lá.
Sentaram-se, então, à mesa, não sem alívio – Francisco, por se sentir resguardado da impertinência de Filipa, esta por se sentir protegida da incompreendida hostilidade daquele -, e começaram a comer, um pouco alheados, cada qual entregue aos seus pensamentos, que, com uma das franjas, roçavam a inquietação, perante um certo desentendimento intelectual – ou seria espiritual?- que parecia espalhar-se entre ambos, qual abismo à espera de caminhantes distraídos.
- Com Rita, as coisas eram bem mais descomplicadas e ela não era menos inteligente do que Filipa - pensou Francisco, mesmo sem querer, sobretudo, sem querer.
- Chegar a uma relação com este Francisco, parece pressupor a abolição da frontalidade e da luxuosa mania de pensar, de querer perceber o mundo, sobretudo em processo de diálogo - pensou Filipa.
Então, à falta de melhor, comentaram como o sushi estava delicioso e avançaram para a sobremesa sem mais interrupções, apenas um ou outro sorriso mudo, trocado sobre o rebordo dos copos de que cada um parecia ter começado a servir-se como dum escudo protector.
Filipa ainda ofereceu café ou uma bebida, o que ele quisesse, mas Francisco, impaciente, declinou a oferta, informando estar na hora de partir.
A perplexidade dela tocou-o, de alguma maneira e, então, disse, por entre a sombra dum sorriso triste:
- Depois de te ajudar a lavar a louça, evidentemente.
Foi, então, a vez de ela declinar a oferta de ajuda, olhando-o, com insistente e descoroçoada demora, numa interrogação muda.
Francisco desviou, rapidamente, o olhar, agradeceu o jantar, dirigiu-se à porta, beijou-a, de raspão, na face, e disse:
- Então adeus.
Caminhou, apressadamente, sem se voltar e sem pensar no modo como, após fechar a porta, ela desabou sobre o sofá, como quem derrama um enorme peso que não percebe de que espécie de pedras é feito e que mal fez ao mundo para ter de suportar.
 
 
 

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