quarta-feira, 18 de setembro de 2013

O MOLESKINE DE JANETE (X)


(Continuação)
 
Encontravam-se, agora, num comboio vazio doutros passageiros, conduzido sabe-se lá por quem ou por ninguém, rompendo a alta velocidade uma fascinante parede de espessa neve, talvez gelo, até mesmo, um glaciar, iluminado por intensos reflexos azuis.
 Os assentos eram confortáveis e, através das largas janelas, vislumbravam, para além da parede de neve ou do que calhasse ser, uma floresta de abetos, cujo verde se deixava subjugar por alvos mantos deslizantes, pendentes em direcção ao solo, por entre os quais, de quando em vez, conseguia divisar-se o movimento furtivo dum qualquer animal, agasalhado em dourada manta de pelúcia.
- Achas que são raposas, Miguel? – Perguntou Janete, no seu tom ingénuo.
- O importante não me parece ser a espécie dos bichos – interceptou Rita, com agastada impaciência, prosseguindo - o importante é que, pela primeira vez desde que estamos aqui, nos é dado contemplar uma forma de vida animal. Poderá ser indício de que, mais cedo ou mais tarde, nos iremos deparar com humanos, não acham?
- Pareces ter razão, o que só confirma a minha ideia de que havemos de encontrar o que procuramos – disse Miguel, sorrindo, não resistindo a reivindicar a autoria daquele bónus prometido.
Janete olhou-o com censório ar de amuo, pois começava a não gostar daquela cumplicidade concordante, que se vinha gerando entre Miguel e Rita.
Distanciando-se dos dois, Rita levantou-se e abriu a porta do compartimento onde se encontravam, no que foi o início duma demanda inquisitorial sobre as revelações que o veículo poderia vir a proporcionar-lhes. Depois do que tinha vindo a acontecer-lhes, surpresa sobre surpresa, susto sobre susto, mais valia fazer uma jogada de antecipação do que ficar à espera da surpreendente realidade subsequente.
Miguel, percebendo a sua intenção e irmanado no seu objectivo, seguiu Rita, dando a mão a Janete, num convite mudo a que o acompanhasse, o que ela fez, rendida à evidência da mais elementar lógica de sobrevivência em meio hostil.
Como se comprometidos num acordo tácito, avançaram em sentidos opostos, ao longo do comprido corredor, abrindo, sucessiva e escrupulosamente a porta de cada um dos compartimentos, assim testemunhando o vazio silencioso que todos tinham para oferecer.
Miguel e Janete já voltavam para trás, quando Rita atingiu a dianteira do comboio, constituída por uma cabine, separada do exterior por placas de vidro transparente e equipada com o que parecia ser moderna tecnologia, cujas funcionalidades, todavia, não eram apreensíveis por leigos, como era o seu caso e, também, o de Miguel e Janete, que ela convocou, largando o eco da sua voz pelo corredor.
Permaneciam os enigmas: por força de que energia e comando se movimentava o comboio, que trilhos eram aqueles que percorria, para onde os levaria e, antes de tudo, como teriam lá ido parar?
A apreensão instalara-se como gato em sofá de dona, arranhando o tecido desfiado das suas mentes desgastadas pelo turbilhão das sucessivas emoções, mais ou menos violentas, a que vinham sendo sujeitos desde o fatídico dia 23 de Abril de 2013, dia da partida.
Também no tempo se encontravam perdidos, desconhecendo quantos dias haviam decorrido desde então.
Valia-lhes continuar a não sentir fome, frio, necessidade de abrigo ou qualquer outra própria da sua natureza originária. Afinal, aparentemente, estavam num mundo despojado de humanos. Seria por isso? Seria que tinham passado para outra dimensão e perdido a natureza humana, confundindo-se com simples peças de maquinaria duma estrutura gigantesca, cuja essência, natureza e sentido, todavia, desconheciam por completo?
Assim se interrogava Rita, enquanto Janete, sem ousar interrogar-se, tal era o medo das possíveis respostas e, sobretudo, da sua falta, se encolhia contra o peito de Miguel, procurando um abrigo, que este, por mais boa vontade que tivesse, lhe não podia proporcionar, pois também ele desconhecia, em absoluto, as imposições do presente, quanto mais do futuro, mesmo o próximo.
Então, Rita entendeu que, ao menos por agora, a única referência sólida que possuíam era o passado e, sempre munida dum prático sentido de sobrevivência, interveio:
- Vocês querem saber como eu conheci o Francisco?
E, sem esperar pela anuência dos outros viajantes, continuou:
- Estava eu sentada numa esplanada, lendo Mr. Vértigo, do Paul Auster, não sei se conhecem, mas, para mim, é o seu melhor livro, ao menos dos 6 ou 7 que já li, e Francisco, na mesa ao lado, não parava de me observar, como eu bem via, pelo canto do olho. Já estava a sentir-me um pouco incomodada, quando ele se levantou e dirigiu a mim, apresentando-se, - chamo-me Francisco – e perguntando se podia sentar-se à minha mesa. Só então reparei, verdadeiramente, nele, como era interessante e como os seus olhos azuis brilhavam, espalhando um sorriso que não me permitiu recusar o seu pedido. – Como te chamas? - perguntou, e eu – que tens a ver com isso?, oferecendo o sorriso mais provocante que consegui encontrar no meu baú dos sorrisos. A breve sombra que aflorou ao seu azul, desfez-se num instante, ao perceber que eu brincava e insistiu, com gentileza e graça – tenho tudo a ver com isso, pois quero chamar-te pelo teu nome e não atribuir-te um nome aleatório ou inventado. – Ah!, estou a ver, mas diz-me lá, que nome seria esse?Bela, só podia ser Bela, respondeu, tão pronta e sedutoramente, que me deixou desarmada. Só então anunciei, - Rita, chamo-me Rita.
Ao ouvir Rita falar do namorado, Janete readquiriu a segurança anteriormente perdida e perguntou:
- Então tiveste um coup de foudre com o Francisco? Sabes, foi isso que sucedeu entre mim e o Miguel, no dia em que ele foi fazer uma palestra à minha universidade.
Miguel olhou Rita apreensivamente, mas esta, tendo tomado por confidências as revelações dele, como, salvo expressa indicação em contrário, sempre fazia com as histórias que lhe contavam, logo o deixou respirar aliviado, quando, dirigindo-se a Janete, respondeu:
- Ai sim? No nosso caso, não se pode falar, verdadeiramente, em coup de foudre, mas sim numa intensa simpatia recíproca que se foi multiplicando, à medida que nos conhecíamos melhor e nos íamos contando um ao outro. Sim, porque, como deves calcular, a partir daquele encontro, começámos a encontrar-nos com a frequência crescente requerida pelo nosso mútuo interesse. Até que, um dia olhei para ele e não pude conter-me, - amo-te, disse. Pareceu-me que ele não esperava outra coisa, pois, de imediato, beijou-me, demorada e apaixonadamente, concluindo, - também te amo. Muito.
Há quilómetros atrás, o comboio começara a reduzir, significativamente, a velocidade, mas eles, embalados como iam na história de Rita, nem se tinham apercebido. Todavia, naquele momento, forte chiadeira sobrepôs-se ao encantamento da distracção, violento soluço agitou-os nos seus lugares e com isto se lhes anunciou a – para eles – abrupta frenagem do comboio.
Olharam em redor, a neve ou gelo ou glaciar tinham desaparecido, apenas um cais, escuro a perder de vista.
Desceram, pisaram o cais, seguiram em frente e, pouco depois, um parco jorro de claridade, exalado por um velho néon, que desenhava estranhos símbolos, parecendo construir uma palavra, indicou-lhes uma porta.
Enquanto apressavam o passo, Miguel disse:
- Animem-se, Meninas, palavras à vista, humanos em perspectiva!
- Isso é o que vamos ver – interveio Rita, com o olhar céptico, que, mesmo sem querer ser desmancha-prazeres, ostentava, sempre que a indefinição da realidade não dava mostras de colaborar com o esclarecimento.
Todavia, Janete, empenhada em solidarizar-se com Miguel e, sobretudo, sempre pronta a deixar-se embalar por contos de fadas, redarguiu:
- Não sejas desmancha-prazeres, Rita. O Miguel tem razão.
Miguel sorriu, contente com aquele reconhecimento.
Era assim, Miguel, como a maior parte dos homens, gostava que concordassem com ele, que lhe provassem, desse modo, a certeza do seu valor, condição da sua segurança. Como se todo o pensamento divergente fosse uma afronta pessoal!
Janete regozijou-se, com o reconhecimento do seu reconhecimento.
Rita não pôde deixar de pensar na fragilidade e inconsistência da mente humana, tão necessitada de reafirmações externas para se credibilizar perante si própria.
E assim, cada um entregue aos seus pequenos regozijos e pensamentos, prosseguiram em direcção à porta, que, estranhamente ou talvez não – afinal, não era a estranheza o denominador comum daquele mundo? -, parecia cada vez mais longínqua.
 
 
 

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