sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O MOLESKINE DE JANETE (VIII)


(Continuação)

A intensidade da experiência por que acabavam de passar ficou impressa nas suas mentes como marca de fogo em pelo de animal, marca que deixa marca que nem outra marca consegue desmarcar.
Janete, completamente exausta, perdeu-se dos seus medos, deixando-se arrebatar por um sono tão profundo que mais parecia estado de coma. 
Miguel, fixando-a como se pela primeira vez, experimentou uma perturbadora sensação de estranheza, que quase verbalizou, pelo menos soou-lhe nos ouvidos: - quem é aquela, porque partimos juntos? 
Rita, recostando-se no chão acolchoado da colina, olhou o céu e, antes de se deixar invadir por pensamentos óbvios - sim, ela conhecia bem a sua reserva de pensamentos, sempre prontos a assaltar -, interrompeu o monólogo surdo de Miguel: 
- Sabes, dou comigo a pensar que o motivo da minha vinda é bem mais estranho do que este estranho mundo onde nos encontramos. 
- Não és a única, Rita, pela minha parte, posso assegurar-te que, por esta altura, já nem sei bem qual a minha motivação – respondeu Miguel, desviando os olhos de Janete. 
- Eu estava cheia de esperança, sabes de quê? De compor as coisas com o meu namorado, aliás, companheiro, o Francisco. Vivíamos juntos há cerca de dois anos e, nos últimos meses, comecei a notar que, pouco a pouco, ele se distanciava de mim. Nada de muito concreto, muito menos declarado, mas havia qualquer coisa no seu olhar… uma falta de brilho, era isso, e, sobretudo, uma grande crise de inspiração; sendo ele publicitário, isso deixava-o cheio de insegurança, não que o confessasse, aliás, repelia todas as minhas tentativas para abordar a questão, mostrando, mesmo, um inusitado mau humor e, pior ainda, uma ostensiva distância, a tal distância. 
- Pois, estou a ver – interrompeu Miguel -, acrescentando, de imediato, sem lhe dar margem para continuar: 
- Sabes, eu tinha uma boa relação com a minha mulher, a Ana, quer dizer, pensava que tinha, estava mesmo convencido disso, todavia, quando conheci a Janete fiquei completamente deslumbrado… 
- Mas tu eras casado? 
- Era, não, sou casado. Um dia fui fazer uma palestra à Universidade e lá estava Janete, embrulhada nuns jeans deslavados e numa camisola de gola alta branca, os cabelos louros muito soltos e aquele doce brilho cor de avelã no olhar; nem me importei com mais nada, quase comecei a gaguejar, foi tiro e queda. Também da parte dela, que não parava de olhar para mim. Terminada a sessão, dirigiu-se-me, pretextando dúvidas, daí saímos para almoçar, seguiram-se uns lanches, jantares e … 
- O resto adivinha-se, interrompeu Rita, sempre prática. E a Ana, como ficou a Ana no meio dessa cena? E filhos, tens? 
- Não, não temos filhos. No início faltou-me coragem para lhe contar, mas depois já não dava para inventar mais desculpas, aliás, ela intuiu que se passava qualquer coisa. Repara, estávamos, aliás, estamos casados vai para 20 anos, sempre nos demos bem e nem sequer posso dizer que estivesse cansado ou tivesse deixado de gostar dela. 
- Então foi ela que te confrontou, não? É o costume, ao menos no caso das mulheres que não gostam de meter a cabeça na areia, quer dizer, detectam os sinais e fingem não ser nada com elas… 
- Não foi nada disso, Rita! Olha que tu, às vezes, tornas-te cáustica! Eu não me sentia bem com a situação e chegou um dia em que me vi obrigado a contar-lhe o que se passava. Obrigado, perante mim, percebes? 
- Quer dizer, no dia em que já tinhas arranjado casinha com a miúda, não? 
- Lá estás tu, Rita! Não, a miúda, como lhe chamas, vivia com os Pais e via-se grega para lhes ocultar os nossos encontros. Pessoas conservadoras, os pais dela, e, em qualquer dos casos, pais. Quem gostaria de ver a sua filha única de vinte e poucos anos, a meio da Faculdade, apaixonada e a ponto de largar tudo por um homem de quarenta e tal e, como se não bastasse, casado? Eu até compreendo. 
- Pois, estou a ver que és muito compreensivo, Miguel, mas conta lá, como reagiu Ana? 
- És mesmo chata! Já percebo porque estava o Francisco desinspirado e … 
- Eh! Stop! Não sejas grosseiro e não fales do que não sabes, ok.? Para tua informação, sempre me dei muito bem com o Francisco e sempre tentei ajudá-lo o mais possível. Por isso me custou tanto deixá-lo, para vir parar a este sítio, de tão alardeadas maravilhas e, como sabemos, de tão constatadas estranhezas, para não dizer horrores. 
- Pois, ainda hás-de explicar isso. Mas tinhas-me perguntado e vou responder-te, se me dás licença. 
- Sou toda ouvidos! 
- Fui completamente sincero com a Ana, bem, ao menos quanto ao essencial. Dispensei-me de mencionar certos pormenores, pois não vi necessidade de a magoar mais do que a circunstância, já por si, impunha. Ela ficou muito parada, olhou para mim detidamente e disse - agradeço-te que me tenhas avisado, afinal sempre tivemos uma relação frontal e não toleraria que me faltasses à verdade. 
- E não te perguntou, ao menos, há quanto tempo a situação durava? 
- Não. Dirigiu-se, calmamente, ao escritório, veio de lá com um envelope de formato A4, estendeu-mo, num gesto elegante e altivo, sublinhado por um sorriso seco, e disparou - Olha, lê com atenção e amanhã devolve-me, já assinado. Perguntei-lhe - o que é isto?, e ela -  a papelada do divórcio. - O quê?, mas eu nem falei em divórcio, eu amo-te - disse eu, e os papeis tremiam nas minhas mãos. - Vai-te lixar e, entretanto, devolve-me isso com a assinatura, foi a resposta dela. 
- Eh! Eh! Eh!, por essa é que não estavas à espera! 
- És mesmo simpática, Rita! 
- Pois sou e calculo que a Ana também deva ser. 
- Ok., eu aguento o teu gozo, se queres que te diga, até me dá uma certa pica! Bem, é óbvio que não estava à espera, mas não penses que me fiquei, enfrentei-a com um ar indignado e argumentei - mas que provas tens tu para falar em divórcio? Achas que não chega o que acabaste de me confessar? - respondeu ela, em tom desafiador. E como vais provar isso? – redargui. Já vais ficar a saber - respondeu. Dirigiu-se, novamente, ao escritório, trouxe novo envelope A4 e lançou-o na minha direcção. Nem precisei de o abrir. Abriu-se sozinho, em voo picado e espalhou várias fotos minhas e da Janete, em situações comprometedoras. Fiquei fulo de raiva e perguntei - onde arranjaste isto, mandaste-me seguir? Não, meu querido, seria incapaz disso, como devias saber, caso me conhecesses melhor! Foram os pais da tua amiguinha que me pediram um encontro, para me darem isso, com o especial pedido do meu empenho em que te afastasses da filhinha querida. Como vês, bateram à porta errada. Coitados! 
- Bem, Miguel, isso é uma história e tanto, verdadeiramente de gritos. Ui! E depois? 
- Depois tive de ir dormir a casa dum amigo, mas recusei-me a assinar os papéis. No dia seguinte, quando, pensando que as coisas estavam mais calmas e que poderia convencer Ana a desistir do divórcio, regressei a casa, deparei-me com o facto de a chave não entrar na fechadura e só depois reparei numa mala, encostada à porta, com os meus pertences básicos, tipo roupa, escova de dentes e computador, e com uma mensagem, riscada a vermelho; dizia: nem te atrevas a voltar sem os papeis assinados! 
Janete mexeu-se, abriu os olhos e murmurou, com ar queixoso:
- Acordaram-me! De que estão vocês a falar? 
- Sossega Janete, estamos no país dos foragidos e o Miguel acabou de me contar uma anedota deliciosa e olha que eu nem gosto de anedotas.  
- Que anedota? 
Enquanto Miguel empalidecia, fitando, alternadamente, uma e outra, Rita respondeu: 
- A do divórcio mágico. 
Mas Janete não queria ouvir falar em divórcios, logo ela que sonhava casar com um farfalhudo e alvo vestido de noiva, rodeada de, pelo menos, 350 pessoas e abençoada pelos pais, após esperada reconciliação. Voltou-se para o outro lado e aterrou, de imediato, nas profundezas do sono.
Tão aflito quanto irado, Miguel pousou um olhar desvairado em Rita, que, não lhe dando tempo a abrir a boca, sussurrou, por entre um sorriso tão divertido quanto cúmplice: 
- Tem calma, Amigo, eu gosto de brincar, mas sou discreta. 
- Ai és? E se ela te tivesse pedido para contares a anedota? 
- Remetia para ti, Miguel. Evidentemente! Eu nem tenho jeito para contar anedotas! 
- E eu que inventasse uma história qualquer, não? 
- Isso agora já seria contigo - sorriu, novamente, Rita, em tom desafiador. 
Miguel não disse mais nada, apenas pensou, mulheres, todas diferentes, todas iguais! 
Rita ainda o observava, divertida, pensando, homens, todos diferentes, todos iguais! 
Todavia, o cansaço impôs-se, inclusivamente aos seus pensamentos, acomodaram-se como puderam e partiram ao encontro de Janete, do mundo em que Janete voltara, rapidamente, a mergulhar.
 
 
 
 

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