sábado, 17 de agosto de 2013

O MOLESKINE DE JANETE (VI)


(Continuação) 

Sorrindo, Rita pediu uma pausa e isso foi o suficiente para aquela harmonia, tão desesperadamente construída, se desmoronar. Bastou desviarem os olhares do foco da sua recíproca atenção e tudo pareceu explodir.
Miríades de intensos néons iluminavam as fachadas dos altíssimos edifícios duma fantástica cidade, conferindo variadíssimas cores metálicas às pedras da construção, que, nos intervalos das luzes, se afundavam na opacidade da noite.
Miguel, Janete e Rita permaneciam, atónitos, no telhado dum prédio de 1015 andares, sobre o qual flutuava uma estrela e velavam milhares de luas, dispostas em círculos, abertos uns sobre os outros, desenhando uma espécie de majestosa tampa do mundo.
De tão estupefactos, faltou-lhes coragem para expressarem os seus medos, como se a omissão fosse suficiente para os exorcizar, e, não pela primeira vez, agiram de forma diferente. Miguel, sempre prático ou tentando sê-lo, talvez, parecê-lo, dirigiu-se à porta que – supunha - conduziria ao interior do prédio; Janete, aterrorizada,  em lágrimas, fincou os dedos, até se tornarem cal, no muro que separava o telhado do abismo, aí se fixando, como quem se cola numa indecisa suspensão; e Rita, dona do medo que a realidade impunha, dirigiu-se, sob controlo, ao muro, olhou, de modo atento, para baixo, o mais baixo que podia alcançar, e, como só conseguisse vislumbrar o brilho difuso dos néons, recuou, dirigiu-se a Miguel, pelo caminho disse, - anda, Janete, e perguntou:
- A porta está aberta?
- Não. Conseguiste ver alguma coisa lá para baixo?
- Só vazio e brilhos difusos, não sei se difusos se confusos, nem sei o que te diga, não permitiram identificar nada. Temos de arrombar a porta, Miguel. E para com essa choradeira, Janete, não resolves nada e já me estás a irritar.
- Calma, Rita – interveio Miguel, ao mesmo tempo que, sem disponibilidade ou, mesmo, paciência, para confortar Janete, se dirigia ao meio do telhado, onde brilhava, caída, uma barra de metal.
Empunhando o luzidio objecto com uma fúria até então ignorada, começou a dar fortes pancadas no que parecia ser a fechadura da porta, ao mesmo tempo que Janete tapava os ouvidos e Rita, como que tomada por absurdo fascínio, movia o olhar dum para o outro, dizendo:
- Destapa os ouvidos, não vês que as pancadas da barra não provocam ruído?!
- É verdade, coisa estranha! – Exclamou Miguel.
- Coisa estranha, essa é boa, quem te ouvir vai pensar que tem sido só normalidade, desde que, ingénua ou parvamente, nos pusemos a jeito para sermos sugados para este mundo maravilha – ironizou Rita, toda sarcasmo e sangue frio.
Mas a outra, tendo os ouvidos tapados e estando tolhida pelo medo, nada ouvia daquela troca de palavras.
A porta cedeu abruptamente, levando consigo Miguel, empurrado pelo ímpeto das batidas, Rita, que estendeu a mão para o socorrer, e Janete, que correu, com medo de ficar só.
Foram, assim, atraídos para um poço de vazio sem fundo à vista, como, aliás, todos os vazios,  por onde escorreram em vertiginosa descida, escancarando-se em inaudíveis gritos e desorbitando-se em aterrados olhares, ao mesmo tempo que as suas roupas desenhavam inesperados e engenhosos movimentos de ballet, quando, inesperadamente, as mochilas, ainda suspensas das suas costas, se abriam em enormes véus, amenizando, mais e mais, a queda, até ficarem a planar sobre um luar azul, tanto podendo ser de luz como de mar.
Estavam tão, mas tão exaustos, que adormeceram em pleno voo, pleno e interminável voo, como quem se habituou a navegar por navegar, desligou os motores, se entregou à maré dos ventos, bons ou maus, deixando o fluxo, sabe-se lá de quê, de que substância ou energia ou nada, tomar conta, encarregar-se, comandar.
As lágrimas de Janete cristalizaram, os braços de Miguel amoleceram e os neurónios de Rita estacionaram.
Calma luz azulada pairava, agora, sobre a macia colina onde os três acabavam de aterrar, qual paisagem de despedida dum pesadelo.
Dispensaram-se de comentários, conheciam bem de mais o pensamento uns dos outros, já não era tempo de cerimónias nem, tão pouco, de reconfortos, todos sabiam que tinham ido parar a um mundo de susto, repleto de perturbadores mistérios e traiçoeiras partidas.
Mas não era assim o mundo donde provinham? - Interrogaram-se.
Que o dissesse Francisco e ela própria, pensou Rita.
Que o dissesse a sua mulher e ele próprio, pensou Miguel.
Janete não pensou nada, porque o medo até (ou sobretudo) de pensar a tolhia.
 
(Nota: Prevê-se continuar, de alguma maneira, em algum lugar e em algum tempo)

 

2 comentários:

  1. Muito bem escrito. Boa imaginação. Associa episódios (Francisco)que dão uma imagem que ilustra um estado de espírito muito comum aos simples mortais. No que respeita à Janete Ca. o cenário assemelha-se a um sonho/pesadelo, descrevendo estados de espírito em ambiente surreal.

    Continua estou a gostar

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  2. Muito obrigada, Ana. É muito bom receber a opinião de quem se dá ao trabalho de ler e ... comentar.

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