terça-feira, 23 de julho de 2013

O MOLESKINE DE JANETE (IV)


 (Continuação)
A pálida e indefinida luz da véspera, ainda mais pálida e indefinida, irrompeu numa claridade difusa, levando-os a abrir os olhos, num lento e distendido piscar.

Cumprimentaram-se com sorrisos amáveis, sem necessidade de palavras, e olharam em redor.
Não entendendo como nem porquê, viram-se situados numa paisagem completamente distinta da anterior. Tratava-se, agora, de cerrado e sombrio bosque, em que majestosas árvores se elevavam a grande altura, misturando-se nas copas, através das quais era quase impossível divisar um retalho de céu.
Ao avançarem, viam-se rodeados de toda a espécie de enormes plantas, que orquestravam infinitas sinfonias de verde.
Pressentiam murmúrios aquáticos, sem, todavia, lhes detectarem a origem. De resto, tudo era sossego, fresca aragem e ausência  de fome, frio, necessidade de abrigo ou qualquer outra dependência inerente ao primarismo da sua natureza originária.
Apesar da beleza do local, o sentimento de inquietação experimentado na véspera recrudescia, pois, persistindo a inexistência de presença humana e de sinalização, ignoravam onde os conduziria aquele caminho, que, de resto e à semelhança de certas criaturas, quanto mais percorrido, menos revelador se tornava.
Estacaram ao mesmo tempo e, como as palavras voltaram a ser necessárias, Janete lamentou-se, com voz assustada:
- Miguel, tenho medo, por favor explica-me o que está a acontecer.
- Tem calma, Janete, vais ver que, quando atingirmos a orla do bosque, a cidade há de surgir em todo o seu esplendor, respondeu Miguel, esforçando-se por revelar uma confiança que, verdadeiramente, estava longe de possuir.
- Não creio que isso vá suceder – interveio Rita, com exaltada apreensão na voz. – Afinal, ontem, à medida que caminhávamos, o horizonte mostrava-se cada vez mais longínquo e hoje nem horizonte temos, nem um vislumbre de céu. Para já não falar no facto de desconhecermos a razão e o modo desta abrupta mudança de cenário. Pela minha parte, só me lembro de ter adormecido subitamente, como se enormes asas me levassem para longe, e de acordar aqui, no meio deste sabe-se lá o quê.
- Acho que tens razão, concordou Janete.
- Vá lá, meninas, não dramatizem, vamos continuar e logo descobriremos a saída, comandou Miguel, enlaçando Janete pela cintura e beijando-lhe os cabelos.
As raparigas não estavam minimamente convencidas, mas o facto é que não tinham alternativas a propor e, como tal, acompanharam Miguel em passo rápido, tão rápido quanto a invasão das plantas lhes permitia.

Mais uma coisa parecia já certa, aquele não era um local em que  a evolução obedecesse a um rumo previsível ou minimamente racional.
Os sentimentos de cada um deles eram idênticos, como se estranha rede de angústia partilhada se estendesse sobre os seus corações, aprisionando-os.
Já os pensamentos divergiam, como divergem os caminhos das vidas de cada um.
Rita enrolava-se em dúvidas sobre a decisão de abandonar Francisco, do modo como o fez, por muito boas que as suas intenções pudessem ter sido.
Miguel afundava-se em  espirais de interrogação, questionando a sua capacidade de estar à altura das estranhas circunstâncias, sobretudo perante a namorada.
Janete reequacionava, ponto por ponto, a decisão de partir, não conseguindo desvincular-se da memória das frequentes críticas e alertas dos Pais, a propósito da sua tendência para a precipitação.
Então, de súbito, os seus passos foram detidos por uma intransponível barreira de árvores e plantas que, de tão juntas e entrelaçadas, lhes barraram irremediavelmente a passagem.
Entreolharam-se, tensos, enquanto uma torrente de lágrimas escorreu dos olhos de Janete, Rita se deixou cair, numa aflição muda, e Miguel, enxugando os olhos de Janete, numa manobra para ganhar tempo, sussurrou a frase que parecia caminhar para o estrelato dum hipotético best seller:

- Vá lá, meninas, tenham calma, vão ver que, em menos de nada, conseguimos sair daqui.
E, como não lhe ocorresse qualquer ideia mágica para concretizar a expressão da sua promessa, sentou-se no chão acolchoado de verdes musgos, tirou da mochila um lápis e um caderno Moleskine de capa preta, formato A5, papel liso, e, com um ânimo que estava longe de sentir, e um sorriso apenas fixado na mímica do seu rosto, proclamou:
- Preparem-se, Meninas. Sessão de desenho com modelo, para aproveitar a pausa. Desperdiçar tempo está fora de questão!
Rita limpou as últimas lágrimas, esboçou um princípio de sorriso e murmurou:
- Só tu, Miguel, para pensares em desenhar numa hora destas. É por isso que te amo tanto!
- Só por isso?!, admirou-se, fingidamente, Miguel.
- Claro que não, tu sabes, respondeu Janete, com ternura, ao mesmo tempo que se escusava a servir de modelo, cedendo a vez a Rita.
Esta, impelida a agarrar a onda de aparente normalidade, no meio de tão surreal ambiente, aceitou, de imediato, a proposta, rindo numa fingida animação, como quem espanta ameaças surdas ou expulsa espíritos perturbados.
Miguel já estava com o caderno e o lápis em punho, escrevendo, repetidamente, em todas as folhas, Janete, como quem não pode abster-se de testemunhar e partilhar a fonte da sua inspiração.

Janete, fascinada, avisou-o de que Rita já estava à espera.
E, assim, Rita foi desenhada até à exaustão, em rápido traço gestual e variadas poses.

Absorvidos como estavam, nem se aperceberam da inopinada mudança que o novo mundo acabava de lhes apresentar.


(Nota: Prevê-se continuar, de alguma maneira, em algum lugar e em algum tempo )


 


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