quinta-feira, 6 de junho de 2013

I., O MERCADOR DE POMBOS (I)

Era uma vez um invisível que vivia abaixo das suas possibilidades, as quais, de resto, não eram nada de por aí além. Et, pour cause, vira-se obrigado a reduzir, reduzir, reduzir, até no tamanho da casa e respectiva porta. 
 
Apesar de invisível, vestia-se de transparências, todo o cuidado era pouco, não fosse dar-se o caso de qualquer visível o detectar, exigir-lhe sabe-se lá o quê ou mesmo puni-lo, sabe-se lá como.
 
Impunha-se ter em conta que o seu mundo era governado, com mão de ferro, por visíveis, geneticamente habituados a correr com os frágeis invisíveis, sempre no receio de serem comidos por estes, coisa que, muito tempo antes, chegara a acontecer, não em consequência de maldade, mas de puro desespero.
 
a minúscula porta da minúscula casa de I.
 
Curiosamente, os antepassados do invisível, I., para os amigos, tinham pertencido à casta dos visíveis. Disso era testemunha o antigo palácio da família, guardado por rígidas grades, e, inclusivamente, servido por um aqueduto próprio, cautela e luxo que, como é bom de ver, não estavam ao alcance de qualquer um.
 
Mas esses tempos e glórias já lá iam havia muito e, com grande pesar de I., o palácio pertencia, agora, à deplorável categoria dos restos, tal como sucedia consigo próprio. Desabitado, abandonado, sem préstimo, mas, paradoxo dos paradoxos, com receio de ser ocupado.
 
antigo palácio da família de I.
 
I. geria um pequeno pombal, tirando algum lucro da venda de borrachos, iguaria muito apreciada pelos visíveis, que, todavia, lhe pagavam pouco e a más horas, nunca se mostrando satisfeitos com a mercadoria, ou por isto ou por aquilo ou, ainda, por aqueloutro. Pretextos nunca faltavam!
 
I. comia e calava, ou melhor, vendia, ouvia, desculpava-se e calava, assim tentando apaziguar tão avarenta e virulenta clientela.
 
Calava, é uma maneira de dizer, pois, verdadeiramente, não se limitava a omitir palavras de réplica, antes ia aprofundando tumultuosos sentimentos de incompreensão e de vingança, que, por calarem tão fundo, o deixavam exausto.
 
Descansava, então, num velho e descarnado banco de jardim, de assento invisível, como ele, pois, consoante já referido, não convinha provocar a atenção dos visíveis, já bastando as tumultuosas transações comerciais, essas, por absoluta necessidade, pois eram a fonte da sua sobrevivência.
 
As pombas, o negócio de I.

 
o banco de jardim em que I. ruminava vinganças



Iria I. continuar nesta triste vidinha por muito mais tempo?










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